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Bernardo Mortimer
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Bruno Maia
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5.6.05

Chumbo Listrado de Branco

Casado com a bênção de um pajé, debaixo de um sagrado coração de Maria que vira a maçã do pecado, Jack White transforma som e fúria em comunhão enquanto aciona com movimentos de mão e cabeça a bateria meiga e tosca da irmã (é ele quem diz).
Um show de surpresas, embora nenhuma música das mais esperadas tenha ficado de fora. A guitarra chora e soluça, a marimba tem distorção elétrica e vira baixo ou guitarra, o piano soa como se em vez de teclas os dedos fossem direto aos martelos nas cordas ali de dentro. E ainda há um teclado pra incrementar os ruídos brancos, vermelhos e pretos - algo entre a Música e o pacto com o Profano e o Sagrado. Ao lado de Robert Plant, Jimmy Page, Angus Young e Brian Johnson, está o jovem Robert Johnson assinando o contrato pela alma.
Claro, e há: Dolly Parton, Bob Dylan e Burt Bacharach. Claro. E sombrio.
Ao lado de tudo isso, a doce Meg não disfarça que não manda nada, mas não é suporte. Não é uma bateria eletrônica programada com acenos de mão e testa, e sim um oposto cênico e dramático.
Assim como a maçã branca ao centro do palco é o pecado de cor pura, que dependendo da luz vira o Sacré Coeur de cor de sange da Virgem, assim como o silêncio é tão importante quanto a distorção, assim como o Satã é a referência e a fuga do que ali está, Meg é a metade do White Stripes. Não o fundo que faz a listra branca ser uma listra branca. E sim a própria listra. Voz suave e angelical (um anjo que cai e volta ao céu), batida delicada e firme na bateria, sedução de pequenos gestos. Qualquer baterista ali rivalizaria e perderia de Jack. Ela rivaliza e não perde – só realça, desencaixa, causa estranhamento e provoca inquietações. Afinal, quando a cabeça se esvazia, é que vira a moradia.
Logo na terceira música, ‘Jolene’, todo mundo grita. O sul da América folclórica se polui de vozes creoles e eletricidade detroiteana, a cidade máquina. O country se urbaniza sem ficar cinza nem virar fumaça, necessariamente. Séculos mais tarde, quando o show terminaria, Jack White pediria que todos, deixando de ser cools, lembrassem ao recém-casado que ele procurasse por uma casa, em outra brincadeirinha popular da mesma região, uma cantiga infantil caipira de coro, em que o líder pede e todos respondem, no caso, “he is looking for a home”. Sendo he, qualquer um, desde que Jack diga assim. Country e blues regurgitados com simpatia. Depois de uma série de baladas, quando o show parecia começar a esfriar (afinal o calor só é calor porque existe o frio, aquela história), de marimba em punho soa a linha de baixo mais sem baixo da história do rock. Ele e Meg enfrentam todos, nem um exército de sete nações os impediria. O estrobe revela um apocalipse. A surpresa de uma platéia em maioria bem preparada para só ouvir o hino depois do bis demora a entender, como se ouvisse um canto dos céus (ou das profundezas – ainda não há certeza em cena). A essa altura, ‘Fell in Love with a Girl’ e ‘Blue Orchid’ já tinham sido tocadas, viriam ‘Hotel Yorba’, e ‘The Hardest Button to Button’. A voz do público já falha, a do pastor de chumbo não. E é com ela que ele volta e pede que a criançada não faça muito barulho antes que Meg ria inocentemente e todos tornem pública a angústia em não saber o que fazer consigo mesmos. O que há de sagrado e profano se esvai, o terremoto desmancha a velha ordem, ao vivo, e o novo renasce do que ali se encontrou onde existiram, um dia, fronteiras. Tudo o que veio antes da década de 20 e o que veio depois da de 70 teve a sua época. “Filmes preto-e-branco explodem em cor. A arte é um blefe. O estilo é substância”. Só o que existe é vida.

E morte.

3 de junho de 2005

ps.: A citação entre aspas é de Salman Rushdie, em O Chão que Ela Pisa.


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