Documentário :: Coração Vagabundo (sobre Caetano Veloso)
Para mim, um filme que nada cachorrinho, apesar da roupa preparada para o mergulho. A fantasia santa de bem-e-mal que Caetano usa na MPB é o grande atrativo do filme. A mera observação dele já desperta o interesse de grande parte – e me incluo nela – dos que se interessam por documentários musicais e até em alguns que não se interessam também.
Fora o aspecto musical, Caetano se consagrou pela facilidade e até prazer em falar tudo o que pensa (ou não, com trocadilho, por favor), para quem quer que seja, ao longo de 40 anos de carreira. Ao contrário de Chico Buarque, que depois da reabertura política se refugiou e só apareceu mais longamente numa série de DVDs feitos por um amigo, Caetano nunca se furtou de conversar com quem quer que seja sobre o que quer que fosse. Digo isso com conhecimento de causa, pois a única vez que lhe abordei na vida, para perguntar se estava gostando do show do Kings Of Leon - que ele assistia prostado ao meu lado na plateia do Tim Festival -, ele desandou a conversar mais de 40 minutos generosamente comigo, abordando desde aspectos artísticos da sua obra até momentos pessoais que não cabiam ali, não fosse ele esse livro aberto que sempre quis ser. Supostamente, ao ir ao cinema, acompanhar o registro de alguém que esteve tão de perto um personagem como este durante alguns anos, é de se esperar uma profundidade ainda maior nos depoimentos, na contemplação, na descoberta, na investigação ou no quer que seja. Isso não acontece.
No início do texto, usei a expressão "Para mim", porque muito do que se compreende de um documetário tem a ver com a própria expectativa, como pintei no segundo parágrafo. Conversando com o Thiago, ele apontou algo que meus olhos não pescaram, que é a observação do provincianismo de Caetano ao redor de lugares do mundo que nada tem a ver com a essência do cantor de Santo Amaro da Purificação. É, de fato, um ponto positivo do filme. Ou seria, se o diretor (Fernando Grostein Andrade) tivesse demonstrado que esse era o seu trabalho. Não tenho essa sensação. Apesar do reconhecimento das minhas próprias expectativas, ainda assim, ficou pra mim a sensação de que o filme se propunha a ser justamente o que eu esperava dele – e não consegue.
Apesar da suposta proximidade com objeto, o filme não consegue observar além do que qualquer outra entrevista com Caetano poderia ter rendido. Ou consegue pouco. Afora o fato de ser um filme produzido pela Natasha Filmes, empresa comandada pela ex-mulher dele, Paula Lavigne, e que ainda gerencia a carreira do cantor, - reforçando o aspecto de um grande video promocional o que e, inevitavelmente, limita a liberdade da montagem, mesmo que isso seja um processo insconsciente e um "poder" não exercido. Quando, em Nova Iorque, Paula dá um abraço apertado em Caetano, quase lhe esmagando, na magreza eterna daquele corpo, aparece a força da presença dela na vida dele. Um relacionamento de 'papéis trocados', se observado pela ótica patriarcal, no qual a mulher faz a função presumidamente masculina. Ela é grande, ele é baixo. Ela é forte, ele é magro. Ela é a cabeça, ele é o coração. Sabendo-se que, anos depois, eles se separaram, espera-se, por exemplo, mais do que uma frase em off, de Caetano admitindo que está triste por problemas pessoais e que "sobre isso não se fala"... Não se fala?! Ok, é uma opção dele a ser respeitada, mas indica a falta de uma proximidade verdadeira entre a câmera e Caetano. Sem essa intimidade, sem essa cumplicidade, como entrar nessa porta aparentemente fechada? Sem falas, a solução se restringe a um plano fácil do Caetano contemplando, triste, uma paisagem japonesa tão distante quanto Santo Amaro. A logomarca da Natasha Filmes também não te deixou esquecer que, no caso, a produtora do filme é a ex dele, né… Vai se falar o quê mesmo?
Caetano só fala à camera em situações que beiram o fake, como se estivesse cumprindo o papel de ter um horário no seu dia em que deve conversar com a câmera para, no final, ter um produto que sirva bem de bônus do seu próximo disco – que, de fato, era o destino pensado para o material. Os papos se dão em passeios pelas ruas das cidades onde Caetano passa. Câmera na mão, tremendo muito, em caminhadas que vão do nada ao lugar nenhum e, por vezes, fazem o caminho contrário. Caetano atravessa tal praça andando e depois volta ao contrário na mesma praça... E os depoimentos são aqueles. Ainda há alguma coisa na casa dele em Nova Iorque, alguma coisa nos bastidores dos shows e programas de tv e rádio. Afora um passeio a um templo no Japão, nada mais é bem explicado e fica a sensação do fake.
Outro ponto é que, aos olhos do diretor, Caetano não desce muito do trono. Há uma necessidade de mostrar como aquela obra e o que ele está fazendo é artisticamente relevante ou grandioso, opção totalmente dispensável e pouco interessante. Se Caetano é tudo isso, não precisa dessa confirmação no discurso da câmera. O músico também aparece como engraçado e sagaz, o que reforça a idolatria pueril.
Lógico que, ao mesmo tempo, como é Caetano, as falas fortes, discursos interessantes – ainda que sobre assuntos óbvios como o envelhecimento e a aproximação da morte – fazem o filme valer a pena. Horas e horas com Caetano e não ter alguns momentos memoráveis não seria muito plausível. Um deles é quando o próprio Caetano diz, já quase no final do filme, ele não acredita muito nesse tipo de artista que não fala muito, que evita expôr suas idéias. Ele prefere falar, até porque, para ele, quem reserva demais as próprias opiniões, acaba se tornando alguém fora da realidade, alguma figura extraordinária, distante do próprio mundo, coisa que ele nunca quis ser. Então, por isso ele sempre fala, sim. Fala muito. Talvez o segredo para se fazer algo diferente e menos óbvio fosse fazê-lo falar menos, valorizar os melhores momentos e conduzi-lo a algo novo. Deixá-lo falar, apenas, acabou sendo muito pouco, mais do mesmo.
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