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Bernardo Mortimer
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Bruno Maia
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11.2.07

Binário na porta do Cine Íris



Bloco na Rua









       Não tem roadie, não tem cerveja da produção, não tem camarim. Não tem palco, para dizer a verdade. Nem tomada na parede. A energia vem das ruas e das pessoas passando. Tem também um cabo ligado na bateria do carro, hoje o do baixista Bruno, que chegou em cima da hora marcada. Ele e os dois outros carros, para ser preciso. A solução foi um papo com os vendedores de cerveja e os isopores foram puxados um pouco para o lado, a gente ajuda. Pára um pouco a rua, manobra o carro, segura a galera que tá passando, calma, é show na rua, sim. Qual é o som? É doideira, responde um dos bateristas, o Bernardo, com um sorriso já suado de ligações no celular para o outro baterista, Rafa, que já tinha saído de casa.
       Todos os sete da banda buscam instrumentos, pedestais, amplificadores e ajudam a armar o circo. Negocia com uma carrocinha de caipirinha aqui, com uma rodinha de gente ainda indecisa sobre enfrentar a fila da festa lotada do cinema pornô ali, tem que abrir espaço. Entre toda a parafernália, a presença do também produtor da festa Cavi, o cara que fez o convite, afinal. E, o mais importante, um papelzinho que faz toda a diferença. A autorização da prefeitura para estar ali. Não é só chegar, tem que antes articular, esperar aprovar, aquela história.
       Depois de centenas de domingos de sol no calçadão do posto 9, em Ipanema, o coletivo carioca que mistura Tortoise com Tablado, baile funk com CEP 20.000 e pagode romântico com cinema de textura agora pode botar o bloco na rua. Virou parte do espaço público. A partir de abril, dez pontos diferentes da cidade terão a honra da presença deles, assim na praça, na calçada, onde couber.
       Antes, as autorizações para o ensaio aberto na praia eram meio que negociadas caso a caso. Às vezes, na hora. Já aconteceu de a guarda municipal ir pedir o papelzinho e falar que sem ele não podia ficar. Aconteceu de juntar gente para reclamar, como assim tirar da nossa praia o Binário? Nas semanas seguintes, tocaram sem problemas.
       À noite, na rua da Carioca, em um pedaço do Centro do Rio que mistura o baixo meretrício com teatros públicos de respeitáveis histórias, festas trash com o eletrônico GLS e a gafieira da Nova Estudantina, o Binário corre contra o tempo. Atrasados, sem a estrutura ideal para o que planejavam, querem tocar para um público que ainda bebe do lado de fora. Discutem: ansiedade e nervosismo disputando espaço com tesão e realização. É a primeira vez nesse esquema, e a aposta é boa.
       Cavi avisa que a pressa é aliada da perfeição, não seria bom que o show de dentro da festa fosse junto com o de fora. E quando chegar a atração da noite no Cine Íris, Rita Cadillac, é para parar. Não dá para dividir atenções. Também não dá para esperar cada binário estar satisfeito com o som. Não tem retorno, e o barulho das três pistas de dança ali no cinema do outro lado da rua são uma concorrência forte. Bernardo e os samples de Estêvão puxam as primeiras levadas improvisadas enquanto Lucas, o vocalista e guitarrista, ainda está longe de estar pronto. Rafael também ainda nem começou a armar a bateria dele. Fábio começa a acompanhar, mesmo sem ter ligado todos os pedais. Surgem as primeiras cabeças nas janelas da festa.

      O show tem que começar, e não demora. A concentração se inicia em volta da banda. São amigos, músicos, malucos, catadores de latinhas, muitos curiosos. Ouve-se um ou outro elogio sobre alguém que toca muito. Sem set lista à vista, a opção é começar com o que o repertório tem de mais porrada. A desvantagem na concorrência com os sons da rua tem que ser de cara revertida, e com três guitarras, duas baterias e um baixo potente, não é difícil.

       Uma música vai se emendando na outra, e para quem nunca ouviu, tudo parece ser um pouco como um imenso improviso só recortado por convenções que podem ser puxadas por Bernardo, Bruno, Estêvão ou Lucas. Nas sessões do Binário, o contato visual é tão importante quanto os ouvidos abertos. Quando são as duas baterias que estão à frente, é sem uma palavra que Rafa e Bernardo acertam a dinâmica e o tempo das frases. Bernardo é o cara do barulho, dos graves e toques de caixa que conduzem. Rafa é o das cores, é o que preenche os contra-tempos e segura o andamento. Um é a força, e o outro o jeito.
       No fundo do palco, vamos fingir que o lugar é esse, Estêvão também age em silêncio. Dispara samples, joga efeitos sobre os microfones, toca bases ao mesmo tempo em que chama Fábio para acompanhá-lo nos coros, ou que avisa Manso que a introdução da próxima, quem puxa é ele. Estêvão parece o tempo todo tentando ler a platéia, e decifrando como dobrá-la.
      Fábio e Manso tocam quase sempre concentrados. O primeiro dá um toque jazzy, de melodias dedilhadas em paralelo ou não à voz principal. O segundo também é mais das notas do que dos acordes, mas sempre com o uso de pedais, que podem jogar delays, reverbs, distorções ou que mais de textura for adequado ao quadro de pinceladas das poesias áudio-visuais binariano.

       É hora do hit. Amor Líquido, o título da canção e do best seller do sociólogo polonês Zygmunt Bauman. O sentimento que mais inquieta homens e mulheres é apresentado dinâmico, em um contexto de intensos fluxos (opa!) de dados, imagens, frases, tempos, armações e fraquezas. A música pode ser mais ou menos prog, a versão depende da ocasião. Hoje, veio longa, rocker, muito distorcida, com uma onda pixies de silêncios e noises. Esquema bom.
       Lucas canta com a voz doce de quem declama um poema recém escrito no papel da mesa de boteco. Fecha os olhos, interpreta a letra com o coração bom de quem vive apesar do trânsito, da pobreza, das coisas passando rápido sem deixar nada que importe. "Às vezes o essencial é ter um som muito bom, às vezes o essencial é estar gostando do que está tocando ali, e o essencial pode ser também o público estar sintonizado com o show", ele me diria mais adiante, depois de encerrados os trabalhos.
       Passa o ônibus, sem abalos, o show não pára.


       Entra a fase romântica dos donos do disquinho Nereida, lançado pela Bolacha em smd, um formato com mais acrílico e menos metal, o que permite a venda a cinco reais. Tarde Demais, música do Raça Negra ganha uma versão praiana de tons escuros, como se o Smashing Pumpkins te chamassem para um luau na chuva. Nada mal, para delírio dos doidos da rua que acompanharam a letra com os mesmos pulos de vários outros momentos da noite.
       A noite ainda teria um clima inverso, quando um tom de teatro entra nos arranjos, e todos cantam frases de apoio. Do Smashing Pumpkins na praia chuvosa, viaja-se para um Arcade Fire vendo o por-do-sol na pedra do Arpoador. Meio épico sem a pompa toda envolvida. É o momento do show em que o público está mais atento. Fábio aproveita para mostrar os grooves que afastam a banda de qualquer risco de chatice experimental cabeçuda. Dos graves dele saem as linhas que fazem os meninos e meninas se mexerem como uma foto polaróide, para pegar emprestado o refrão ganchudo de uma dupla americana aí. Ganchudo é a palavra.
       Qualquer dia desses, quando você estiver passeando na rua, ouvir uma barulheira, e se sentir imediatamente atraído a ir ver, pode saber. Binário de bloco na rua.

3 Opine:

At 11:33, Blogger Unknown said...

valeu bernardo, muito boa reporagem.
falou bonito.
bruno

 
At 16:25, Blogger Unknown said...

tamo junto...
e o sax? armar esse som aê!!!

 
At 01:52, Blogger Unknown said...

Poucas pessoas conseguem verbalizar o movimento como você. Você sacou a parada. Foda!

 

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