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Bernardo Mortimer
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Bruno Maia
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11.11.05

Elocubrações: ouvido para música

Ouvido Para Música

           Ontem, fiquei conversando com a faxineira aqui de casa. Ela canta no coral da igreja, uma igreja longe uns dois bairros e dois túneis da casa dela. Ensaia toda semana, duas vezes em épocas mais concorridas, e canta todo domingo, às dez da manhã. Participa também das ocasiões em que uma noiva quer ver os cantadores na cerimônia do matrimônio, quando uma esposa os quer para as bodas, do Natal, da Páscoa, e de toda vez em que é convidada. Nos casamentos, não fica pra festa, porque ninguém do coral vai querer ficar até tarde, tendo que acordar cedo no dia seguinte.
           Regina é mezzo soprano, mas prefere cantar na ala dos contraltos, porque tem menos gente e ela gosta mais da voz mais grave. Só canta música litúrgica, a não ser quando a missa é de sétimo dia, e os parentes pedem uma específica da preferência do homenageado – geralmente um sambinha ao qual ela faz careta: ninguém sabe nem a letra!
           Ela ganhou um violão de uma mulher onde ela trabalha toda semana há anos, mas nunca conseguiu tocar o instrumento. Também nunca se esforçou. A onda dela é cantar mesmo, e quando é cobrada pela patroa sobre a procedência do presente, se defende e diz que não deu não e que o violão tá guardado em cima do armário, pra um dia ela pegar e aprender.
           Dois irmãos, que moram no Maranhão, tocam na noite, mas não vivem disso, porque não são os filhos de Francisco. Só Zezé e Luciano ganham grana com música, o Lulu Santos até ganha, mas não é a mesma coisa. Tanto que tentaram seqüestrar o Lulu e não conseguiram. Nessa hora, ela dá uma gargalhada do que disse. Se ele fosse rico teria sido ao menos seqüestrado. Caetano Veloso é outro que vive de música, mas não ganha o dinheiro dos sertanejos. Percebo, de alguma forma, que ela quer me provocar com a tese sertaneja, mas eu fico quieto. Não vou defender Lulu Santos. Fico só pensando como eu sou desinformado ao só ter descoberto lendo entrevistas publicadas na Carta Capital há menos de um mês que o popstar tem uma briga famosíssima com os caipiras.
           Ao meu silêncio, ela se cansa de sutileza e ataca. Às vezes, o coral também toca com banda, e ela inclusive já tocou com gente de trombone, daquela outro assim, e de saxofone que nem o que você tem naquela caixa. Mas ela não gosta. Tuchê! Não me lembro de ter aberto o queise pra ela, ou de ter comentado o que tinha dentro, mas o ponto não é esse. Eu sou o Lulu Santos, do saxofone, ela é o Zezé, com a diferença do dinheiro. Ela ri sozinha.
           Caio na provocação e digo que eu não, em determinado momento decidi que ia me esforçar pelo jornalismo ao invés da música, e que é só por isso que eu não ganho dinheiro soprando, mas correndo escrevendo editando criando repetindo fazendo uma roda aí girar. Já os irmãos dela é que são legais, porque não desistiram de tocar o que gostam, mesmo que precisem de outros trabalhos. Quem não precisa? (Tá, Zezé não vale, mas ele faz propaganda política também). Mas a relação de legitimidade entre a origem social, cantar e ganhar dinheiro é que é engraçada.
           Ela resolve abrir um pouco mais o jogo e diz que o coral da igreja às vezes é muito chato, porque as velhinhas vão lá só pra conversar e contar as doenças, e que ela sempre se vira pro maestro e pergunta como está a terapia de grupo, mas ele ganha pra isso e ela não, e sorri. Depois de tudo isso vem a frase que despertou uma série de pensamentos (ainda mais) difusos e soltos. Regina diz que tem ouvido para música, não assim um super ouvido de entender tudo na música, mas um ouvido que funciona pra cantar, e ver o que está errado. Eu digo que se eu cantasse, tudo estaria errado. Ela diz que não, porque quem toca acaba sabendo cantar, o contrário é que é difícil, cantar e saber tocar. O ouvido de tocar é mais difícil. Ela volta ao Zezé e Luciano, apostando que eles têm ouvido pra cantar – enquanto Caetano e Lulu, com certeza, têm ouvido pra tocar também.


           De uma forma muito estranha, bateu em mim forte essa coisa de separar um andar de cima: meu, de Lulu e Caetano, ligado aos instrumentos, onde não há espaço para os irmãos dela (que pelo visto tocam muito mais do que eu, por exemplo); e um de baixo, o dela e de Zezé e Luciano. Nesse, mesmo que ganhando mais dinheiro, dinheiro de verdade, podendo até ser seqüestrado, nesse há espaço para o ouvido de cantar, habilidade orgânica e de resistência.
           Antes de reagir, afinal era muito mais uma implicância em cima do patrão bagunceiro improvisada na hora, me vieram algumas questões sobre a música popular e a Música Popular Brasileira.
           Estava ouvindo, justo naqueles últimos quinze ou vinte dias, a trilha de ‘A Pessoa É Para O Que Nasce’, um cd duplo. No disco 1, que não priorizei por um motivo ou outro que qualquer Freud socialista militante enxergaria facilmente, estão as três ceguinhas “multiplicando muitas vezes seu repertório, imprimindo em sua memória os sucessos passageiros e os clássicos que nunca deixam de ser tocados”, como descreve belamente o encarte. Ouço sem parar o disco 2, de reinterpretações por “artistas profissionais” (encarte). É difícil entendê-lo, mas eu tento.
           Quem abre o disco é B Negão ao lado dos Paralamas, que fazem uma música bacana com o melhor versinho do repertório de Indaiá, Poroca e Maroca transformado em refrão para rimas enfileiradas: “Atirei no mar/ O mar vazou/ Atirei na moreninha/ Baleei o meu amor”. Legal, mas o destaque é mesmo ‘Siga e Venha, Siga e Vá’, também de B Negão, agora com dj Rodrigues.
           O acerto que torna a faixa o que há de mais belo entre as releituras é que B ousa em fazer o caminho contrário ao de todos os outros artistas. Ao invés de trazer para seu universo os cantos ingênuos, simples e non-sense das personagens de Roberto Berliner, o rapper ouviu com atenção e foi falar a língua das três – claro, com o sotaque todo dele.
           Assim, B Negão vira um pedinte de canto repetitivo e quase monocórdio, de artistas de rua que absorvem como mantra palavras e melodias ouvidas e reagrupadas no que o encarte poderia de chamar de processo poético de um dia-a-dia duro. Não há brilhos sobrando, roupa de gala para a elegância da pobreza. As batidas do dj Rodrigues só reforçam o universo da rua como o palco das composições de sample de memória das que não vêem.
           Claro, não se está aqui tentando o elogio por exclusão ou contraste, o disco é todo fantástico e muito diferente: Pato Fu faz uma baladinha linda, assim como o mombojó. O Eddie aplica o carimbo de terceiro mundo do lixo-lama na brega-pop ‘Laurinda’, Lenine formata para seu violão a linda ‘Como É Bom A Gente Amar’, o caos realça as versões de Fausto Fawcett e Lula Queroga, e ‘Tamborim’ de samba sujo vira um samba limpo com Zé Renato e Teresa Cristina. Muito boa também, minha segunda preferida, é a ‘Coco do Leão Arretado’ de Canastra e Nervoso e os Calmantes, que virou um duelo climático e pseudo-sertão de bang bang.
           Mas a tal história do ouvido pra música está mesmo mais clara no B Negão.

           Nisso tudo, entre pensamentos, fui ver a pré-estréia de ‘Cinema, Aspirina e Urubus’, de Marcelo Gomes (roteirista de Madame Satã). É o terceiro longa de ficção pernambucano desde a Retomada a entrar em circuito no Rio. O primeiro foi ‘Baile Perfumado’, que se apresentava como Árido Movie: “a mistura inquieta de estilos, linguagens e ritmos é o paralelo comum que existe entre a música e o cinema que se faz no Recife”, palavras da dupla de diretores. Em ‘Amarelo Manga’, o diretor Claudio Assis escreve que “o universo aqui é o da vida-satélite e dos tipos que giram em torno das órbitas próprias”. Um satélite na cabeça de quem não adivinhar de que cena foram convidados os artistas responsáveis pela trilha dos dois filmes.
           Pois, ‘Cinema, Aspirina e Urubus’ é sem dúvidas um árido movie, mas não tem nada de mangue bit. A começar pela trilha, mais para Lupicínio Rodrigues e Carmen Miranda, não há nada (cores, personagens, aspecto social) que remeta às relações de tradição e modernidade ou miséria e sofisticação da estética dos caranguejos com cérebro. A coragem do pernambucano (o imdb dá que ele nasceu em Manaus, mas vá lá) em dar um passo à frente para não ficar no mesmo lugar só enriquece o cinema brasileiro. Trata-se de uma fábula de dois homens que se tornam amigos ao aproximar os passados e desejos opostos: dois mundos que demoram a se ouvir. E quando se ouvem... não vou contar.

           Por último, a capa do terceiro disco dos Strokes, que deu ao sobremusica o maior número de visitas em um dia, em uma semana, em um mês. Imagem e música, uma só estética, e a importância do ouvido, do ouvir, o gancho é este.
           Se depender das comunidades do orkut para a banda no Brasil, os nova-iorquinos deviam pensar em trocar os planos. Depois de um primeiro disco histórico com uma capa que esfrega na cara que é rock’n’roll, que é sujo e marginal, preto-e-branco, abusado e explicitamente sugestivo, veio o ‘Room on Fire’ com uma capa retrô sem muito charme. Desculpe-se aquela história toda de segundo disco, mas a terceira capa dos Strokes tinha que dizer ao que veio a banda. As músicas do disco – já conhecidas ao vivo ou virtualmente – deixam claro que a banda é aquela mesma que fez bater de uma vez em todas as cabeças uma onda de novidade, visitando o passado, mas novidade. O leque de timbres está algo maior, mas ninguém se surpreenderá a não ser por eles ainda conseguirem botar a Internet e os shows ao vivo (não por acaso a forma de divulgação mais nova e a mais velha) a favor da obra.
           E diante disso tudo vem uma capa abstrata, que estabelece que o título do disco 'First Impressions of Earth' não é uma ironia. A verdade é que se não tivessem as músicas sido apresentadas (ninguém acredita que “vazou”, né?) antes, todos esperariam um disco progressivo e experimental, no máximo mais perto de David Bowie na fase Ziggy Stardust, e não é bem assim. Os traços verticais mais claros também sugerem uma separação ou ruptura que não está nas músicas.
           Donde se conclui, sem certeza, que é uma capa sem ouvido para a música.

           Por último, uma letra do Cansei de Ser Sexy, que – decidi – vai ganhar uma segunda ouvida minha:

From all the drugs the one I like more is music
From all the junks the one I need more is music
From all the boys the one I take home is music
From all the ladies the one I kiss is music (muah!)
Music is my boyfriend
Music is my girlfriend
Music is my dead end
Music is my imaginary friend
Music is my brother
Music is my great-grand-daughter
Music is my sister
Music is my favorite mistress
From all the shit the one I gotta buy is music
From all the jobs the one I choose is music
From all the drinks the one I get drunk is music
From all the bitches the one I wannabe is music
Music is my beach house
Music is my hometown
Music is my kingsize bed
Music is my hot hot bath
Music is my hot hot sex
Music is my back rub
Music is where I'd like you to touch

1 Opine:

At 19:22, Anonymous Anônimo said...

Tá escrevendo bem, ein muleque.

 

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