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Bernardo Mortimer
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Bruno Maia
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27.10.05

Shows: Dona Ivone Lara e Dr John

Rio de Janeiro x Nova Orleans

       Festivais de cinema, de música, maratonas culturais, todos esses eventos são a grande realização de quem ama e de qualquer forma vive mesmo mergulhado nas expressões artísticas que buscam a alma humana. Mas cada nova edição de uma destas séries loucas de oportunidades imperdíveis a se perder que se passam a cada ano, especialmente a cada segundo semestre de cada ano, se for reparar, vem também com uma ponta de reflexão sobre os tempos modernos.
       O consumismo. A ansiedade por querer estar em todos os lugares ao mesmo tempo, e encontrar todas as pessoas legais e ainda algumas novas, de calcular um “será que vai dar tempo” com a variável “não pode atrasar” ou, às vezes, “tem que atrasar um pouquinho” – tudo isso é comum e implica necessariamente em filmes que não maturaram na retina quando você já está entregando o ingresso para a outra sessão, em fraseados ou movimentos no palco que foram atropelados pelo baticum de outra tenda, pelo violãozinho moderno e bossa nova no meio da platéia micaretada, do cavaquinho punk e assim por diante.

       Domingo, depois de um surpreendente show de um Buena Vista Social Club do batuque, sem mujeres a não ser a convidada Leny Andrade e a receita do cigarro para não afinar a voz, o Conga Kings se despediu com o pequeno congueiro engolido pelo terno às lágrimas. Bonito, mas este filme cubano já passou no festival de anos passados.
       O que vinha depois era uma dupla em nada parecida. A primeira atração, Dona Ivone Lara, a dama do samba do Império Serrano, em roupas de gala e jóias de rainha, com um microfone falhando sem entender o papel ali de cetro da música clássica brasileira, do blues nascido carioca, do muito bem chamado e sem necessidade de epítetos Samba.
       Ninguém, entre pagantes ou convidados ali perdidos, tinha vindo para ela, e muitos ainda estranhavam o deslocamento de Dona Ivone em uma escalação que tinha ainda uma orquestra de frevo, mas nenhum representante da música instrumental brasileira mais próxima ao jazz. Ora, o samba e o frevo têm palcos pela cidade, e agora tomava o de um festival que se distancia mais e mais do que já foi seu nome – ao lado do antigo patrocinador. Pois bem...
       Dona Ivone veio de lá pequeninha, e seguiu o aviso de pisar naquele chão devagarinho. Depois de um número só com a banda, com dois casais no coro, o piano de Leandro Braga, dois violões, um cavaquinho e dois percussionistas, ela entra nobre no palco, passa pela cadeira que usaria ao longo da apresentação para cantar com jeito de vó contadora de histórias e começa a soltar a voz. O som é ruim, um chiado faz desconfiar de interferência, ou de cabo com mau contato, mas ela não tira o sorriso digno e dolente e encanta uma platéia que perde feio para os garçons na hora de acompanhar a poesia imperiana no gogó.
       De deslocada, Dona Ivone não se faz de rogada e lá pro meio do show se apresenta: “eu vim de lá, eu vim de lá, pequininha/ mas eu vim de lá pequininha/ alguém me avisou pra eu pisar neste chão devagarinho/ alguém me avisou pra eu pisar neste chão devagarinho”. No canto, em frente ao palco, uma galerinha de meninas e, por conseqüência de marmanjos com olho grande, respondeu: “foram me chamar/ eu estou aqui o que que há”.
       Logo em seguida, jogou uma ‘Sonho meu’ - que Gal e Bethânia já haviam apresentado ao repertório de qualquer classe média - e assim botou o público heterogêneo de rappers paulistas a maurícios do Leblon e casais de cabeça branca que não olham para a coluna direita do cardápio para acompanhar o bumbo com a palma da mão e, há quem diga, com aquele músculo percussivo que fica dentro do peito.
       Para terminar, o momento mais lindo da primeira metade da noite: com a comunhão de vozes de um terreiro e a sofisticação dos sambas feitos em botecos de vizinhança suburbana, Dona Ivone Lara invocou a nostalgia do negro há muito distante da Mãe África em uma canção de liberdade, de louvação à cor da pele e à cor da tradição que não depende de espaços para se manter resistente e bela. “Um sorriso negro, um abraço negro / Traz....felicidade / Negro sem emprego, fica sem sossego / Negro é a raiz da liberdade”.

       Uma pizza e cerveja depois, do lado de fora que era menos assalto, tinha início a segunda metade da noite. Ao contrário do que sonhava, já sabia que Dr John viria sem naipes de metais, só com um baterista de marchin’ band, um guitarrista de rock’n’roll setentista e um baixo funkaria até o caroço. Todos capazes de passear pela praia dos outros e por mais ainda: de jazz à mardi gras ao blues à santeria caribenha e a baladas de corações partidos.
       E o bruxo franco-caribo-sulestadonunidense, ou simplesmente a imagem folclórica de Nova Orleans como ela já foi e há de voltar a ser, rezemos, agradou a todos mesmo assim.
       Dr John entra no palco de terno laranja, chapéu panamá e bengala africana (lembra o guru babuíno do Rei Leão?), senta-se entre o piano de cauda com uma caveira em cima e o Hammond que o acompanharia em uma ou outra música, na mão direita, com a esquerda fazendo o baixo no piano e o pezinho marcando o tempo, em uma apresentação mais para o r’n’b do que para o blues ou o jazz dos discos.
       Teve a tradicional ‘My Indian Red’, a marchinha franco-carnavalesca ‘Didn’t He Ramble’, o choro derramado de blues ‘Goodnight Irene’ com resposta em coro do baixista e guitarrista, só para citar as do meu disco preferido “Goin’ Back to New Orleans”. E mais músicas e músicas, várias que eu não conhecia, com solo de concha e uma série de barulhinhos e percussõezinhas, que me fizeram batucar incessantemente as coxas que não demoraram a ficar doloridas, alegres e doloridas.
       O montinho de gente ao lado do palco cresceu em relação ao da Dona Ivone, e o baterista ajudou a confusão das mesinhas organizadas com um grito de “this is jazz, come on, stand up and dance” no mais próximo que se podia chegar a um carnaval fora de época com a cerveja a exorbitantes cinco reais. E foi aí que a festa ficou séria.
       A marcha fúnebre já tinha sido citada uma ou duas vezes, e de novo voltou para uma versão triste e melancólica do antigo hino da alegria da Luisiana: ‘When the Saints Go Marchin’ In’. Meio torta e fora-da-ordem, o estranhamento demorou a bater e revelar o sentido de toda a simbologia com o passado e o momento político atual do estranho país do jazz. Os santos voltarão para casa, depois de cumprido o tempo de luto e reconstrução.
       Antes de ir embora de vez, Dr John entoou um "Home sweet home, we'll gotta go back to New Orleans, Right after the storm". Um lamento de liberdade e renascimento para a terra negra da América de lá. Viva Orleans!! O Rio de Janeiro!! E os carnavais!!


       E eu só agora entendi.


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