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Bernardo Mortimer
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Bruno Maia
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29.12.06

O Céu de Suely, a trilha

Os Forrós de Hermila, Karim, Kassin e Berna


      Os olhares e os sorrisos de Hermila, personagem de Hermila Guedes em O Céu de Suely, transmitem força a um primeiro plano do que o filme quer tratar como assunto. O segundo plano é o que o assistente de direção e roteirista, Felipe Bragança, descreveu como o “chão seco em que se pisa, para o céu lavado ao qual se olha”. E o terceiro é a música do lugar, fundamental para a abstração que vai levar o espectador a se aproximar dos sentimentos, aos afetos e à fé da forte personagem desse segundo longa-metragem de Karim Aïnouz, quatro anos depois de Madame Satã.
      Os super-closes do rosto, dos olhos verdes, e do sorriso de dentes certinhos e curtos de Hermila narram a perspectiva da história contada. Hermila está sempre em foco. É pela subjetividade dela que a cidade de Iguatu será apresentada. A relação entre a personagem e o meio ao qual ela chega e onde não quer ficar é que vai conduzir as decisões e os rumos da história.
       A pequena cidade do sertão de O Céu de Suely é um deserto estático, sem vento, cercada por todos os lados por luzes e sons de um mundo em transformação. O chão é árido, o céu é desolador: belo, porém melancólico. A informação corre rápida e rodeia Iguatu, mas Iguatu é de um passado e presente imóveis, parados. Por isso, Hermila perde o olhar no horizonte, à procura de uma fuga de um futuro que precisa ser sacudido. Essa é a missão que a personagem vai cercar. É circular que ela quer, é ir para fora.
       Daí a importância da música em O Céu de Suely. O presente do filme é cercado e imóvel, mas não isolado de todo. Há sinais de pontes, como as estradas, as bonitas motos... Mas o mais forte é a música. Forrós eletrônicos, versões de músicas em inglês, trazem para o mundo de Hermila tudo que ela ainda tem da São Paulo que deixou pra trás junto com o marido que não vai mais chegar para armar com ela, no sertão, uma banquinha de cds e dvds copiados.
       Quando a voz da ex-mulher de Odair José, Diana, soa em Tudo O Que Eu Tenho, versão de Everything I Own, conhecida na gravação de Boy George de há uns vinte anos, são dois mundos que estão se cruzando a partir do nordeste que o diretor quis apresentar. E, vale dizer, esse nordeste é pouco representado no áudio-visual brasileiro, embora seja um tanto autêntico. Tanto que nenhuma das músicas foi composta para o filme, elas foram pesquisadas e reunidas pelo diretor. O brega ultra-romântico toma para si um sucesso do rádio lá de fora e o adota com o sotaque que lhe soa melhor. Cada uma das músicas da trilha é um exemplo do tráfego de informações e de referências em uma dinâmica de mundo que não isola nenhuma localidade. Iguatu é longe de tudo, mas não é alheia a tudo.
       Ainda é o caso de Blábláblá, versão de Thorn (Natalie Imbruglia) cantada por Solange Almeida e tocada pelos Aviões do Forró. E da canção principal do filme, que fez o caminho inverso. Não Vou Mais Chorar – um sucesso no nordeste, também dos Aviões do Forró – já se viu transformada em tecnobrega, em axé, e no que mais permitiu a criatividade dos artistas nordestinos. A livre reapropriação, impulsionada na urgência de festas da região, são um efeito da ansiedade por movimentação, por circulação das vozes, no caso sempre femininas, que o filme retrata. Pirataria? Ou sinal dos tempos? A jovem mãe de Mateus é também, com a franja descolorida, uma filha de Iguatu transformada pelo que viu lá fora. A circulação que ela anseia não é o passeio dos forrós eletrônicos, o sucesso de novas versões am de antigos temas de fm. Mas uma nova busca por um conforto que pode estar sempre em outro lugar. Não é certo se Hermila tem uma opção ou algo maior.
      Hermila só é feliz quando a música está presente, mesmo que acompanhada por um vidro de acetona, cerveja ou um cigarro de maconha. A alegria e a paixão são o vislumbre do mundo fora do deserto de Iguatu, diz o sorriso da personagem. Ao decidir armar um plano de saída, Hermila veste-se em uma Suely que já dança outras músicas, tímida, sem sorrir. A música, agora, é a do rádio do motel, deslocada do ambiente, mal sintonizada. Há sofrimento na decisão pela rifa de uma noite no paraíso com ela. É a tempestade no deserto, todos querem uma rifa de Suely, e ninguém quer Hermila na sua venda, na sua casa, na sua companhia. A cidadezinha se mexe para desejar e repudiar a rapariga. A saída significa renúncia, coragem, e um árduo desapego. A circulação se confunde entre desejo e circunstância. Uma circunstância provocada, mas não planejada. Não é mais uma opção, mas algo maior.
      Os sentidos da maternidade, do carinho da adolescência, da família e da prostituição são todos enfraquecidos pelo olhar verde (o céu é azul, a poeira da terra é amarela) para fora, pela janela, de Hermila. Ela vai para o sul, para “o mais longe que estiver daqui”, e quando puder volta para buscar o filho, a avó e a tia.
       A música da despedida, do ônibus que some no céu acima da estrada, é a única que é de outra ordem, nem das antenas de São Paulo nem dos cds gravados dos forrós de Iguatu. Somebody Told Me, do grupo alemão Lawrence, é uma doce composição eletrônica que abre o destino para uma imprecisão etérea da realização de Hermila-Suely, agora confundidas e viradas de costas para a janela em movimento. Remixada, a música faz a ilha ficar para trás. O presente também. À frente, o céu.


      Em todo o material de imprensa do filme, a escolha das músicas da trilha aparece creditada ao diretor Karim Aïnouz, ao longo do processo de realização. Mas na ficha técnica, é a dupla Kassin e Berna Ceppas que aparece creditada a Música. Deve ser um crédito técnico de tratamento do áudio e de eventuais edições. Além da mixagem final. Para ouvir as faixas, o site do filme tem uma rádiozinha que dá pro gasto. Outra dica é uma matéria de Bianca Kleinpaul para o Globo Online.

2 Opine:

At 20:56, Blogger Bruno Maia said...

AInda nao vi, mas quero ver. Pela sua descrição fiquei curioso sobre a relação dela com a cidade. Por alguma razão me pareceu a Itabira de Drummond às avessas. É por aí?

Qto à música creditada ao Kassin e Berna,nao seria uma musica incidental que exista durante a narrativa? Pode ser que a trilha sonora tenha sido escolhida pelo diretor... Enfim, tô chutando...

 
At 10:47, Blogger Dulegal said...

Com um enredo desse, eu esperava um bom filme, à maneira dos bons road movies q o cinema já nos deu. Mas esse filme peca por ter um roteiro ruim, a narrativa documental (parece q a gente tá vendo uma reportagem do Jornal Nacional!), os personagens são inconsistentes e superfiaciais, não uma continuidade narrativa, há muitas quebras de cena, justamente qdo a gente pensa q vai acontecer algo realmente. Com um tema desse, era de se esperar q o filme nos tocasse profundamente, mas, sinto muito, a mim não tocou nada vezes nada, em que pese o esforço e o bom desempenho da Hermila Guedes, mas, francamente, faltou uma direção mais vigorosa, mais visceral, digamos assim. Sei que o filme foi premiado e elogiado por aí, mas tenho minha opinião própria, não sou obrigado a me deixar levar por um nacionalismo cinematográfico ("ah, o Brasil agora tá produzindo bons filmes!"). Um filme não tem de ser bom só porque é feito na nossa terra. E o melhor do filme é a música de abertura, gostei da adaptação.

 

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