Festival de marchinhas 2008
Um certo orgulho de ser carioca
As marchinhas começaram na hora. 19h30. A Globo transmitiria a disputa ao vivo, não dava pra atrasar. A recuperação do carnaval de rua do Rio de Janeiro é um dos maiores bens culturais que a cidade recebeu nos últimos anos. Toda uma geração que passou os carnavais da adolescência pelo nordeste ou pelo sul do Brasil, hoje prefere ficar e curtir a própria cidade. Uma nova geração não sabe e nem quer saber de gastar dinheiro pra viajar no carnaval. Junto com a festa de momo, vieram o sorriso, a intimidade com as ruas, a economia e, sobretudo, a auto-estima. O festival de marchinhas da Fundição Progresso há três anos ganha força e traz consigo o sentido mais amplo de cultura: valorização da memória, renovação artística, entretenimento realmente democrático, empregos e alegria. E àquela hora, a Fundição era palco de um dos momentos mais emocionantes que presenciei nos últimos tempos.
Emocionante por tudo isso, pelo colorido, pelo compromisso, pelo respeito ao público, pelas crianças correndo soltas com confete e serpentina, pelos velhinhos sentados ao fundo cheios de sorriso, pelas letras distribuídas em folhas de papel coloridas, pelos bondes pacíficos, pelo sósia do Zacarias, pelas diabinhas, pela geração de novos sambistas que vem renovando todas as variáveis do gênero, pelo paganismo abençoado pela catedral ali do lado, por ser carioca e se sentir um pouco dono de uma história tão bonita que entornava pelas mãos e vozes dos músicos.
Já não há como negar a evidente recuperação de parte da auto-estima cultural da cidade nos últimos anos, principalmente nos fenômenos que têm a música como mola, seja nas novas dimensões que o funk tomou, seja com o samba. O rock, é verdade, perdeu esse bonde. A participação da Globo pelo segundo ano seguido ajudando a escolher a “marchinha do ano”, através de votação popular e nacional, pelo Fantástico, não tem necessariamente a ver com essa recuperação, mas ajuda a reforçá-la.
Nestes tempos em que a cultura nacional é regida pelas leis de incentivo e, mais ainda, pelos editais da Petrobras, é gratificante ver um projeto que cumpre o seu papel de propiciar retorno social. O entretenimento democrático, num microcosmos carnavalesco, é um bem cultural que foi sendo degradando com o passar dos anos. Inserido na Lapa, o bairro que foi revitalizado na última década, tendo o resgate e a redescoberta do samba como mola, o festival complementava essa história. Assim como ao longo do ano, os grupos novos movem a economia lembrando Noel, Wilson Batista, Pixinguinha, João da Baiana, Caymmi, misturando com o novo, o mesmo acontece com as marchinhas quando chega o carnaval. O concurso homenageia Lamartine Babo, que dá nome ao troféu conquistado por Mauro Diniz e Cláudio Jorge, com a música “Volante com cachaça não combina” e tem José Roberto Kelly – um dos maiores compositores de marchinha da história - como jurado. Foi essa mistura que apresentou os jovens a um repertório que eles tratam como tesouro; aos adultos-de-40/50 um circuito gastronômico e musical que os permitem curtir com certo conforto de quem está no auge da carreira e aos mais velhos uma recuperação da vida que as limitações físicas muitas vezes impõe, sem os forçar a gostar de algo que não é da sua geração e que eles não tem nenhuma obrigação em ver valor.
A senhora de seus 75, 80 anos, sentada na mesinha, com um sorriso no rosto, uma lente de aumento numa mão e a folha de papel com a letra de uma das novas marchas concorrentes na outra, se esforçava pra ler e cantar. Pela fragilidade do corpo, que contrastava com a vitalidade do espírito ali encarnado, ela só conseguia pronunciar a última frase do refrão. Ali, era ela a metáfora de algo muito maior, que certamente ela nem sabe. Ali, era ela a metáfora de que algo aconteceu no Rio, porque, sim, algo aconteceu. E eu acho que ando meio fraco, sensível talvez. Havia algo de história naquele olhar, naquela lupa e naquele sorriso. E, sei não, devo estar meio sensível, mas aquele sorriso fez lágrimas fugirem de mim. Sorrindo.
**********************
Vêm chegando os pierrots!
2 Opine:
"Toda uma geração que passou os carnavais da adolescência pelo nordeste ou pelo sul do Brasil, hoje prefere ficar e curtir a própria cidade. Uma nova geração não sabe e nem quer saber de gastar dinheiro pra viajar no carnaval."
Sou dessa geração, principalmente desta da segunda frase. E, de alguma forma, também fiquei feliz com o Festival de marchinhas, muito embora tenha visto somente através do Fantástico.
Parabéns pelo texto.
Excelente blog, parabéns.
Postar um comentário
<< Home