Músico é artista :: artistas fazem arte (ou dinheiro?)
Este texto foi escrito por mim na semana passada,
originalmente, como comentário ao artigo "Aqui
não tem mais loja de discos!", de Marcelo Cabral, no
o site Overmundo. O conteúdo tem, de certa forma, a ver c
om o texto que o Bernardo escreveu aí abaixo.
Posto-o, pois, aqui.
Acho que uma coisa a música vai ter que entender com essas mudanças todas: músico é artista. Artista ganha com sua arte e não com a reprodução indiscriminada dela. Picasso ganhava dinheiro com seus quadros. No máximo, licenciava para uma empresa o direito de fazer cópias e reproduções. Se neguinho escaneava essas cópias, ou reproduziam ela de outra forma, o Picasso não estava nem aí! A parada dele era pintar quadro e ganhar com isso. A matéria prima do músico é a sua música e a execução ao vivo. Há que se abrir mão do direito de venda de cópias. A distribuiçao tem que dar dinheiro pra quem quer distribuir e não ao músico. Ou pelo menos não pode ser essa a principal fonte de renda de um músico. Ele tem que entender que o capital dele é a capacidade de performance, de apresentar a música. Estamos fazendo o caminho contrário, voltando para o tempo dos grandes concertistas que não tinham cópias de seus concertos. Eles eram únicos, pois a arte era ligada a um momento igualmente único. Com o tempo, ela se afastou disso, mas agora vai ter que voltar e eu nao acho ruim. É claro que a forma como cada um vai negociar o direito de distribuiçao da sua obra é particular. Quem souber negociar melhor ou tiver um melhor produto, vai ganhar mais. Mas a essência dessa arte se reaproxima e eu fico feliz com isso. Músico é pra fazer música e não cópia de cd. O cd é só o meio para ele chegar ao palco e ao consumo do seu produto, bem como a matéria no jornal, a propaganda, etc... Quem quiser irmais fundo, vai lá e lê o Walter Benjamin com "A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica", clássico da faculdade de comunicação! E vem cá (agora alguns vao querer me matar, hahah), o que é mais interessante: que o camelô ganhe o dele fazendo a publicidade do músico, boca-a-boca, como ele faz ao anunciar o disquinho que carrega e vende, ou as rádios com os seus jabás que sustentam uma rede imensa de anunciantes, com interesses bem menos compreensiveis? Qual é a diferença do camelô que vende a cópia da cópia da cópia pra rádio-jabá? Quem você acha mais digno? Pra quem você vai torcer?
6 Opine:
Claro que o camelô aí, na maior parte das vezes (tem lugar que não é bem assim, mas são casos mais específicos), vende o que já foi divulgado pelo jabá etc. e tal. Então, nem essa estrutura aí do camelô, quando o jabá sumir, vai resistir. Esse aí vai ficar vendendo só o Windows pirata mesmo.
Essa discussão tem mil fatores no meio. É claro que o sistema que existiu até há um tempo atrás tá se desmanchando, só não dá pra saber o que é que vai ou deve aparecer no lugar.
Pode ser, André... É tudo um grande achismo, um mar de vidências. Só queria aproveitar para explicar que quando eu digo que há que se abrir mão do direito de venda de cópias,estou falando que OS ARTISTAS tem que parar de pensar na remuneração por venda de bolachinha, de mídia e, sim SE FOCAR em CAPITALIZAR sobre a própria arte. Não defendo que ninguém deixe de ganhar dinheiro, mas que passem a ganha-lo de forma mais inteligentes e novas. A comercialização de mídia que continue sendo feita pelos agentes que se interessarem pelo risco do negócio. E não vai faltar gente, porque o bagulho ainda dá dinheiro...
Só complementndo o que o Bruno falou. Se o músico não se adaptar a esse novo sistema que está chegando, mais na frente ele terá que correr atrás do tempo perdido e já existirá uma infinidade de outros artistas que já estarão bem mais ambientados com essas mudanças, e nisso quem vive no underground ou é artista independente, já faz a muito tempo.
O artista independente sempre teve que se adaptar de forma rápida às mudanças que vão acontecendo. Basta citar um exemplo que é a parceria com os selos independentes e com as distribuidoras independentes que diminuem a burrocracia e que chegam bem mais perto do consumidor final.
O uso cada vez maior da internet não apenas como meio de divulgação, mas também de comercialização da música só ganhou ainda mais poder depois da massificação dos MP3 players, e a tendência é cada vez mais essas ferramentas serem exploradas ao seu limite e ninguém nomundo tem idéia de qual será ou quando será que chegaremos a esse limite.
Guilherme Carvalho
Boas questões. Apontamentos que faço:
- "A arte era ligada a um momento único" - Estranho. Arte nunca é momento único. Toda composição tem seu processo. Ouso dizer que nenhum momento é único, em certo sentido, na medida em que também pode o ser. Repetições existem. Senão, vamos acabar numa teoria do caos vazia, criadora de absurdos sem valor.
- "Com o tempo, ela se afastou disso, mas agora vai ter que voltar e eu nao acho ruim." - 'Vai ter que voltar' é desejo teu. Esquisita formulação, supostamente derivada de uma nostalgia do que não se viveu (a não ser em termos ancestrais, o que não parece ser o que você tava propondo dizer). Não dá pra depreender os caminhos desse desejo. Quanto a 'voltar' ou não, o fundamental é que a história não se repete.
- "Mas a essência dessa arte se reaproxima" - Opa! Pára tudo! Você fala isso e depois cita Benjamin. Não casa nem de perto. A essência da arte e de todas as coisas é a historicidade. E não as características da ligação dos homens a ela em determinados momentos históricos. Tudo que é sólido se desmancha no ar. Parece que você se esquece de que Benjamin é marxista, é comunista. Recomendo outro texto, que não é clássico de faculdade nenhuma, mas que aprofunda um pouco isso: "O autor como produtor". Não deve ser difícil de achar.
- Legal diferenciar distribuição de execução, que é essencial na publicização da música. E isso é pouco comentado por aí. Agora: "direito da venda de cópias", assim por você nomeado, não seria o caso de se chamar "direito autoral"? O assunto não é, de fato, esse, tão ampliável para outro campo, tão importante como a 'cultura' - a ciência? Ou a proposta é, realmente, tratá-lo de forma tão indireta?
Valeu. Abraço. André Mendonça.
Discutir com André Mendonça é sempre bom. Vamos, pois, a este esporte divertido.
Acho que você não leu meu texto tendo em vista o mesmo contexto que eu pensava ao escrever. Provável falha minha. Fato é que reitero a frase de que "a arte era ligada ao momento", pois o que quis dizer foi que o consumo de bens artísticos estavam vinculados a apenas um momento. Você comprava a chance de ver aquela apresentação do Beethoven e nao um disco que poderia ser ouvido indefinidamente. não me referia ao processo de criação e composição. Cuidado.
Eterno retorno não é uma questão desse texto, a priori. E o meu "vai ter que voltar" nao passa por esse ditame Nietzscheniano. O que quis dizer é que a indústria musical vai ter que se remodelar. Não é vontade. Ou melhor, é vontade, sim, mas é, sobretudo, observação. Cada vez mais as gravadoras interferem nos contratos de artistas novos buscando participação no lucro dos shows. E era disso que eu estava falando.
Concordo que a essencia da arte está ligada a historiciedade, mas acho que a tal da "aura" de Benjamin permanece e supera o tempo. Ela não se deforma. E não entendi o que o fato de Benjamin ser marxista ou não tem a ver com isso.
Direito de venda de cópias NAO É direito autoral. É o direito sobre a reprodutibilidade técnica. Essa nao deve interessar mais ao artista diretamente. Tem que ser realocada na cadeia. E, por fim, de novo, não entendi suas duas últimas perguntas.
Valeu?
Volte sempre! E leia com menos ódio no coração, heheh
Pra começar, obviamente que não li o teu texto no mesmo contexto que você pensava ao escrevê-lo. Decerto que não somos a mesma pessoa :)
Bato na mesma tecla. Isso da arte, antigamente, ser "ligada a um momento" é insustentável. O consumo de bens artísticos estava ligado a "apenas um momento"? Peralá! Nada nessa vida está ligado a um momento só. E o exemplo que você dá não ajuda: um disco que pode ser ouvido várias vezes e, ainda assim, a cada hora de uma maneira diferente. Pode ser que cada momento que você o escute pode ser único, na percepção de novas nuances, vozes, harmonia, contracantos, efeitos sonoros, letra, discurso político, detalhes do encarte e da capa, sei lá, tudo que tá ali compreendido. Ou não. Ele simplesmente pode não ser ouvido, mesmo que esteja tocando a altos volumes no aparelho de som! Mas isso aí depende de muitas, e complexas, variáveis: fundamentalmente, da riqueza ou pobreza tanto do trabalho, tanto do ouvido de quem escuta. Dessa forma, uma pessoa pode ter ido, em séculos passados, a dois concertos diferentes de obras de Beethoven e não ter sentido nada diferente. Você nunca ouviu aquela reação meio ignorante de algumas pessoas quando ouvem, por exemplo, música 'clássica': "música clássica é tudo igual"? Eu já ouvi isso várias vezes, por mais diferentes que fossem, por exemplo, os compositores e composições. E o pior é que as pessoas falam isso e realmente o sentem!
Acho que a sua percepção da relação do sujeito com a arte tá um tanto confusa. Talvez você esteja desconsiderando o valor que tem a experiência e a emoção do sujeito nessa relação, tanto em termos coletivos quanto em níveis de singularidade, sempre situada em processos históricos.
Quando você diz que não se referia ao processo de criação e composição, é justamente isso que eu queria estar assinalando. Não dá pra separar assim tão soltamente a criação e a composição da apresentação pública. A apresentação, encaro assim, é apenas uma instância do processo de composição e elaboração artística, fundamental, mas nunca isolada. O que eu noto por aí, e não só no seu texto, é uma certa fetichização desse "momento único" da apresentação ao vivo. Ora: se o disco está sujeito ao processo histórico da reprodutibilidade técnica, da mesma forma estão as apresentações musicais! Já vi, em um caralhada de vezes, grupos dos mais variados segmentos de estilo musical, orquestras e pequenas bandas, fazendo apresentações burocráticas, repetitivas, quase idênticas às gravações ou apresentações anteriores. Muita gente boa, inclusive. Talvez você também perceba isso, mas quando o deixa de escrever, textualmente, parece desconsiderá-lo.
Obviamente que a indústria musical vai precisar se remodelar, se quiser sobreviver. A característica histórica, portanto essencial, de qualquer indústria é uma permanente necessidade de estar se transformando para não sucumbir ao feroz mercado capitalista, que destroça sem piedade, às vezes sumariamente. Só acho que isso não pode, de maneira alguma, ser encarado como um "vai ter que". Esse registro do "ter que" é complicado. Tem indústrias que simplesmente desaparecem (e isso não é, a priori, bom ou ruim). Ainda mais porque, no seu texto, você não se referia a "ter que voltar" à indústria, mas à arte em geral... dá uma conferida.
Quanto ao fato de Benjamin ser marxista, isso é absolutamente fundamental. Acho que não dá pra pegar o trabalho de um cara do porte dele sem estar atento às suas referências mais primordiais. A frase que escrevi antes, sem aspas, provavelmente você a conhece, é das mais manjadas do Manifesto Comunista: "Tudo que é sólido se desmancha no ar". E é justamente esse princípio básico da ciência marxista, que pode ser traduzido num simples "nada é para sempre" ou, no caso, mais grosseiramente, "nada supera o tempo". Isso que não se deforma, essa essência alheia à história, do ponto de vista marxista, não existe, é inconcebível. É idealismo, em termos mais precisos. Não sou muito conhecedor dos textos de Benjamin, mas posso dizer com certa segurança, não absoluta, que o pensamento dele não vai por aí. O texto que recomendei esclarece muito essas referências que ele apresenta.
A título de ilustração, tem um diálogo no O Leopardo, do Visconti (só vi o filme), em que isso é dito de forma muito bonita: o Príncipe, ao se dirigir ao burocrata de estado, diz que as coisas vão permanecer como estão "para sempre"... mas emenda: "o 'para sempre' humano, um ou dois séculos".
Quanto à eterno retorno e Nietzsche, prefiro não falar no assunto, que é extremamente complicado. Mas faço uma ressalva parecida a que eu fiz com o Benjamin: essas referências, me parece, precisam ser utilizadas de forma consistente, sustentável, de forma que não fiquem soltas e soem como utilizações quaisquer de trabalhos tão amplos. Esses caras têm uma produção muito grande e referências essenciais a contemporâneos e antecessores, no que muitas vezes não dá pra sacar seus métodos de trabalho por meio de textos isolados. Pra mim, e eu não pude deixar de sacanear, esse é um dos efeitos maléficos do ensino universitário (no de comunicação isso toma ares de caricatura). Eu sinto muito isso, especificamente, em relação ao Freud, que me é mais familiar que qualquer outro autor: neguinho lê o Mal-Estar na Civilização, texto fortíssimamente ligado a muitos outros de sua obra, e acha que já conhece muito bem o que o cara estava pensando. Esses grandes cientistas, de importância enorme, têm um percurso de pensamento que não pode, nunca, ser ignorado, se realmente quisermos utilizá-los como referência elaborada.
Por fim, but not least, parece-me que a questão do direito autoral e a do direito de venda de cópias está um tanto confusa, pelo menos para mim. Talvez seja bacana você fazer, quem sabe, um texto mais específico sobre isso, para que possamos dialogar, esclarecendo aspectos práticos e conceituais dessa diferenciação. Eu certamente desejaria ler e trabalhar essa questão, que tanto me interessa.
É isso. Pra terminar, só vou discordar mais uma vez :) - não li o texto com ódio no coração. Se o fizesse, certamente que responderia de forma a simplesmente atacá-lo pessoalmente, mas acho que não fiz isso em nenhum momento. Inclusive, isso em nada me interessa. Se me dei ao trabalho de respondê-lo, e já estou o fazendo pela segunda vez e de forma bastante demorada, é que o assunto me é vital e, mais do que o assunto, estar participando de um debate frutífero que gere efeitos de pensamento, tanto em mudanças como em ratificações. Além do mais, é uma forma de prestigiar o trabalho do seu site e tentar contribuir com alguma coisa. Isso pra mim não é esporte.
Grande abraço, André Mendonça.
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