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Bernardo Mortimer
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Bruno Maia
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1.12.06

O Hutúz Rap Festival do Bruno

Aonde vai?

A questão que o Hutúz mais me suscitou foi sobre o discurso e as linguagens do rap nacional. Papo velho? Sim, eu sei. Porém, a edição 2006 deste importante festival tornou e retornou a jogar luzes sobre isto.

Na sexta-feira, a grande estrela era o Racionais MC's. O show foi morno. Porém, algumas pessoas da platéia mostravam que a relação dos fãs é parecida com a que se vê em shows do Los Hermanos. Músicas cantadas com força e devoção. Messianismo. Não se vive mais o auge da banda, mas ainda é possível ver sinais destas manifestações. O grupo montou um cenário bonito, simulando as vielas de uma periferia qualquer. O grande problema ficou por conta do som. Mais do que o som da banda, o som do evento estava ruim. O grande lance da música do Racionais MC's e da grande maioria dos grupos de rap nacional é o discurso, as palavras ásperas e cortantes sobre uma realidade que o universo pop naturalmente esconde. Daí a contradição.

foto: Fabiana Cruz

Não entender o que o cara canta quando o principal é o discurso é o mesmo que querer nadar sem água. Outrora, as bases do grupo já passaram por uma influência soul, black, gospel, que davam um charme maior ao som. No show de sexta, o que se ouvia era uma volta à antiga escola de rap americano, com bases que hoje já soam quadradas, e a tradicional bazuca verbal. Quem conhecia as letras, urrava. Quem não conhecia, não entendia, nem se impressionava. Os herdeiros do punk rock e do hard core podem dizer que entender palavra por palavra não é fundamental e que o importante é o peso, a velocidade, a sonoridade e tal... Contudo, para um trabalho que é baseado na mensagem, não tem essa. O som tem que estar bom, muito bem equalizado. No Hutúz, estava embolado. Os agudos se perdiam e os graves do vocal só chegavam em forma de massa sonora, sem clareza. Isso tudo deixou a apresentação do Racionais ainda mais esquisita.

esta e as demais fotos abaixo por Bruno Maia

O show de MV Bill, no sábado, foi muito mais interessante. O som ruim, porém, persistiu. Com uma gama de referências muito maior, Bill subiu ao palco com um DJ, com uma outra MC (Camila, sua irmã), um violonista, naipe completo de metais, com um cello e um violino. Mesmo não tocando algumas de suas músicas mais marcadas por outras referências, como "Noite", Bill soube jogar melhor com os arranjos e mostrou que seu trabalho musical é, hoje em dia, muito mais interessante que o dos paulistanos racionais.

A Batalha de MC's foi o ponto alto do Hutúz 2006. Fenômeno pop fortíssimo, estava sempre lotada. Apesar do calor insuportável que fazia dentro da saleta reservada para o os MC`s batalharem, muita gente se espremia lá dentro e na escada que dava acesso ao local. As disputas foram agitadas, tensas, empolgantes e demonstraram já existir um grupo de MC’s que compõe claramente uma geração de qualidade. Apesar do vencedor do Hutúz 2006 ter sido MC Beleza (campeão da Liga em 2005), totalmente influenciado por Eminem, tanto nas divisões e velocidades de rima, quanto no discurso agressivo-bobo, o destaque sobremusica foi para Negra Rê. Principalmente na sexta-feira, ela avacalhou a concorrência. No domingo, ela acabou se saindo mal, perdendo a semi-final e a disputa de terceiro lugar. Negra Rê, que dá aula de rap na Rocinha, até tem o sonho de gravar um disco. Mas em entrevista, ela deixa claro o pé no chão que os integrantes deste movimento já tem. Quando perguntada sobre seus planos para 2007, ela não titubeia: “Eu quero evoluir ainda mais no que eu faço. Quero dar mais aulas, fazer mais trabalhos sociais. As ONGs que estiverem precisando de alguém para dar aula de reforço social com o rap, podem me chamar”. Gravar disco? “Lógico que eu tenho meus sonhos. Mas esse é um projeto que tem que ser muito bem trabalhado”.


Pra quem ainda não viu uma batalha dessas, a grande graça é quando um dos MC's parte pro ataque verbal pesado ao outro, zoando os pontos fracos seja da técnica ou até mesmo da roupa, do cabelo e da história de seu oponente. Além de funcionar como uma espécie de ombudsman do próprio movimento, pois através da detonação acaba apontando os excessos e as caricaturas que surgem, os MC’s divertem e excitam a platéia. Alguns preferem rimar se vangloriando, falando de suas próprias histórias, de por quê eles são "os" bonzões, num processo de auto-afirmação que também agrada a galera. Afinal, ao se afirmarem, eles acabam também detonando os oponentes. Porém, é nessa hora que surgem alguns sinais que voltam a dialogar com o norte desse texto: o discurso e o som.

A utopia em torno de figuras messiânicas como Che Guevara aparece em meio ao bombardeio verbal. Isso remonta à década passada quando o rap surgia mais consistente no Brasil e os Racionais e a trupe paulistana ditavam os nortes do "movimento". O tempo passou, mas Mano Brown e Ice Blue parecem que continuam sentados no trono, achando que seguram o cedro. Por mais que se mostrem acessíveis, conversando com todo mundo que os cumprimenta, assistindo a shows fora do cercadinho reservado aos artistas, no palco a postura ainda parece um pouco assim. A influência sonora da velha escola americana (Run DMC, Public Enemy, LL Cool J (das antigas!!), etc...) soa datada e caxias. A coisa de não falar com a imprensa também é muito questionável. A postura de MV Bill é muito mais profícua ao movimento do hip hop do que o cartaz de Mano Brown. Nesse momento do rap nacional, Brown, artista especial que é, deveria se posicionar, discutir e dialogar. Vai vir o Bernardo e dizer que gosta desse lance de um ser Malcolm X e o outro ser Luther King. Mas cá entre nós, já estamos em 2006. Internet, youtube, blogs, myspaces, selos, shows em qualquer canto, produção independente bombando... Não. Em tempos como esses, o exemplo de Malcolm X é datado. Ele hoje não trabalharia assim.

Durante o show de MV Bill no sábado, houve a participação surpresa de Mos Def. Ao chamá-lo para o palco, Bill disse que achava importante o trabalho do rapper americano tanto pelo som, quanto pelo que ele falava. Ao fim, MV Bill pediu que a galera não que deixasse de ouvir o que vem de fora, mas que se ligasse mais em rap nacional. A participação de Mos Def foi rápida e animada. Ao lado do palco, vi Mano Brown sorrindo e balançando o ombrinho. KL Jay se amarrou também. Ninguém é tão bravo assim.

A outra participaçao surpresa do Hutúz veio no domingo. O DJ Spin Easy, que toca na abertura dos shows de Snoop Dogg, fez participações no intervalo dos shows do palco principal. Grande fã da música brasileira, de Banda Black Rio a Ivete Sangalo, passando por MV Bill, Cabal e Racionais, ele disse em entrevista ao sobremusica que acha fundamental que o rap brasileiro repita a atitude do rap americano, mas não o som: "Como foi que surgiu o rap nos Estados Unidos? A gente pegava os discos das nossas mães, colocava pra tocar e saía rimando em cima. Eu acho que os brasileiros deviam fazer isso também e ir procurando suas referências nos seus próprios discos, porque a música do Brasil é muito rica".

Em entrevista com MV Bill tentamos repercutir algumas dessas questões.

sobremusica: Durante muito tempo o rap nacional teve algumas pessoas fundamentais a frente para explicar o discurso, pra formatar a coisa e tal. Hoje em dia, pessoas como, vamos citar, vocês, os Racionais, o Thaíde, a galera das antigas, sentem que ainda têm uma influencia muito grande sobre a galera que tá começando, que presta muito atenção no que vocês dizem que é pra ser feito ou já há um sentimento maior de independência, de se sentir à vontade, pra criar?

MV Bill: Cara, eu acho que durante um tempo, muito tempo, foi assim. Todo mundo era pautado pelas bandas que estavam mais à frente. Acho que aconteceu uma coisa muito boa que foi algumas pessoas começarem a buscar o seu próprio norte. Pelo fato do rap ser uma música urbana, de rua, eu acho que o grande lance é incorporar as características locais, seja do país, do estado. Quando isso acontece, na diversidade, a gente musica mais a parada e não se transforma num produto caricato. Porque uma coisa que eu tenho dito nas entrevistas é que os grupos precisam se preocupar em sair da caricatura. Sair da caricatura é não querer ser o Mano Brown, porque só vai existir um. A gente tem que olhar novas coisas. A gente está apresentando também o hip hop Latino Americano desde 2004 pra gente ter contato com as coisas da América do Sul. Cada lugar que nós vamos, ouvimos o rap e identificamos características daquele país dentro do rap! Isso falta ao Brasil ainda. A gente ainda precisa alcançar isso. Precisa perder a vergonha da nossa própria cultura.

sm: E você acha que a galera já tá conseguindo criar mais independente ou ainda tá muito presa?

MVB: Muito presa. Tá começando a criar ainda. Tem que criar muito mais.

A dicotomia (se é que realmente existe) entre a valorização do discurso ou da sonoridade permanece no ar ao fim desta edição do Hutúz. Qual é a importância de se manter uma pureza sonora e de discurso? É maior do que a da fusão, da renovação do gênero? Que sonoridade é essa? Que discurso é esse? É de dentro-pra-dentro? É de dentro-pra-fora? Quem é que dá as cartas do rap no Brasil? Qualquer um pode jogar esse jogo como quiser ou ainda o Rap é compromisso? Arte é compromisso ou descompromisso?

Certamente, a função do festival também não era tentar resolvê-las. Nesse sentido, vale muito mais o fato de se celebrar a produção de um evento deste porte basicamente com a estrutura criada ao longo dos anos pela CUFA (Central Única das Favelas). Grande parte da produção executiva e técnica do Hutúz foi executada por pessoas oriundas de projetos da entidade. Segundo o Bernardo apurou, o som, tão problemático, não foi feito pela galera da CUFA, mas sim por uma empresa contratada.

sm: A gente vê que na galera que tá filmando, que tá operando, tem um pessoal que vem de um aprendizado na CUFA. Hoje em dia, em relação a quando começou, vocês já se sentem mais confortáveis porque essa galera ta mandando muito melhor e tal...

MVB – Isso é inegável. Isso vem num crescente gradativo e isso não foi só em termos de estrutura de eventos mas também das pessoas que estão se profissionalizando, hoje a gente tem um, pô, eu poderia chamar de um “exército de pessoas” no mercado de audiovisual, gente de produção, de produção cultural, sabe? Eu fico muito feliz em poder fazer parte desse processo. Mas quando eu olho lá na frente, eu vejo que tem muita coisa pra fazer ainda.

Ok, o rap é um movimento de periferia. Mas a chegada para o centro das cidades passa por essa abertura de ações. A retórica conscientizadora precisa evoluir na direção da prática, da atitude, como as coordenadas por Bill, a frente da CUFA. Em 2006, qual é o rap que transforma? O rap quer transformar alguma coisa? Quer se transformar em alguma coisa?

Por fim, o Hutúz mostra que Racionais, Bill, Cabal, SpinEasy, Pavilhão, Batalha de MC`s, Palco independente e tudo mais formam um cenário muito plural para o rap nacional. Plural, mas sem norte. Isso é ótimo, se for aproveitado, pois mostra caminhos abertos. As cartas estão na mesa. Quem vai blefar, quem vai pagar pra ver e quem vai mudar de tática para ganhar esse jogo não são meros detalhes.

3 Opine:

At 23:19, Blogger O Anão Corcunda said...

Sobre a música dos Racionais: não acho que o grande lance do som dos caras seja só as letras - que são muito boas, por sinal. Acho que eles tem uma construção rítmica muitíssimo interessante. Essa foi minha grande surpresa ao ouvi-los pela primeira vez há bem pouco tempo atrás. Não saco nada de rap, não fui ao referido show, não sei se eles têm mantido o nível, mas todas as músicas que eu já ouvi deles apresentam essa característica rica em relação ao ritmo, fator geralmente não levado em conta quando ouço falar de rap, mas que é um dos pilares em qualquer análise musical.
Abraço,
André

 
At 09:33, Blogger Bruno Maia said...

Eu sei, André. Mas ao contrário de você, não vejo nenhuma novidade em relação ao ritmo. É uma coisa bem calcada nas referências do rap americano do início dos anos 80, com divisões parecidas e o trabalho "sonoro" (vamos chamar assim...) baseado em samples também dessa época. Acho que falei isso no meu texto, senao foi por que esqueci. Na época que eles lancaram o Sobrevivendo no Inferno (1997), havia, realmente, uma base rítmica mais interessante, fundida com outras referências e isso foi se perdendo com o tempo.

 
At 00:25, Blogger O Anão Corcunda said...

Não falo muito dos samples, mas das divisões rítmicas da 'melodia'. Ali tem muita coisa que eu nunca ouvi em outro lugar aqui no Brasil. Não conheço de perto as referências americanas, mas do pouco que já ouvi, ao longe, não tem nada a ver. A acentuação dos caras é bem brasileira, muitas vezes com aquela síncope muito tradicional dos nossos binários - algo que não rola em música americana em geral. Não sei direito localizar os discos dos caras, muito superficialmente apenas, e principalmente trabalhos da década de 90, então não sei se evoluíram a ponto de levar a coisa pra frente - algo que aparece com mais nitidez em alguns sons do Recife que fazem rap com embolada.
É claro que a influência americana deve ser fortíssima, a ponto dessas inovações rítmicas não parecerem tão assim inovadoras. Mesmo porque entendo que, nas artes em geral, as inovações formais são geralmente lentas, ainda mais quando permeadas por importações/exportações. Os primeiros choros são europeus pra caralho... mas são choros. Quando você fala que as divisões são "parecidas" com a do rap americano, isso é mais um indício que tem algo muito diferente. Acho que é aí que tá o valor da coisa, e estou falando em termos musicais.
O que me parece, em termos mais gerais, é que o rap é meio 'renegado' do status de música, já que a letra teria essa importância que se sobrepõe ao trabalho rítmico. Eu pensava um pouco assim, mas quando ouvi os Racionais, passei a pensar diferente.

 

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