St Elsewhere, Gnarls Barkley
Os Nerds Também Põem Para DançarPlay e uma chave gira a ignição. O motor pega, aquece um pouco e vem a fanfarra, marchin’ band, som de metaleira incandescente. A vontade é a de enlouquecer e sair pulando, mas ainda não é hora. Por baixo, a voz faz um contra-canto que vai crescendo em volume, sempre em resposta à frase que se repete várias vezes, às vezes alguns tons acima, às vezes de volta ao tom original. A música é a brincadeira de vivo ou morto entre a fanfarra e a derramação da alma na voz de um negão. A bateria é esperta, e faz o meio-campo quebrando quando é bom quebrar, às vezes até roubando a cena. E um fade vai e distorce para o fim.
Entra um baixo marcial, gravão, cheio de harmônicos. Cada nota é seguida de um ecoar no vazio. São as barras de ferro de uma cela chamada abandono. Se o amor liberta, a solidão aprisiona... Camas de teclado e violino preparam a voz do filho de pastores, Cee-lo, o astro daqui. Loucura, agora sim. Música de verão, para quem entende que estação significa como você está em dado momento. Esquece a chuva e o frio lá fora, e presta atenção aí dentro.
Mais lentinha, St. Elsewhere – a música - sobrepõe vozes quase emboladas para esclarecer. O papo é a devoção à elsewhere, um outro lugar, a sagrada novidade. A dupla ainda nem começou o disco direito e já afastou as dúvidas, entre o mar de referências cruzadas e – melhor – derretidas. É ouvir como nunca ouvido, em uma prateleira sem fim de álbuns e álbuns, todos a um search dos melhores baixadores de arquivo do ramo de distância.
Dangermouse é a dupla de Cee-Lo no Gnarls Barkley. Vinha surgindo como produtor de boas experiências no rap do underground, quando conheceu the voice, três anos atrás. Portanto, antes do Grey Album, quando mash-upeou o White dos Beatles com o Black de Jay Z e botou na Internet o trabalho, para desespero de gravadoras envolvidas. Antes também do ‘Demon Days’ Gorillaz.
E foi nesse tempo, envolvido com outros projetos, trocando idéias por emails e msns que os dois foram esculpindo os quase sempre menos de três minutos de cada rascunho que virou música em ‘St. Elsewhere’ – o disco. Cee-Lo tem história de várias participações em projetos alheios, incluindo o Outkast e músicas de louras e de ex-carinhas-de-boyband no r n'b. É uma lenda do sul dos EUA.
E Dangermouse é o cdf dos discos, fascinado por todos os que ainda não ouviu, do rock pesado ao eletrônico dos 80, do hip hop dos 90 ao surgimento do drum n’ bass, etc. É o que ele contou nas entrevistas de lançamento, para o site Pitchfork e para a revista Les Inrockuptibles. Disso, nascem arranjos que por pouco não são uma parede de quarto de adolescente recheada de posters de revistas interesseiras. Ao contrário, o acerto é justamente seguir a lição de certo quarteto de Liverpool, e colar todos em uma mesma foto posada para a banda de clube Corações Solitários do Sargento Pimenta. E isso é reforçado com as poses promocionais da dupla, fantasiados de Jason e Freddy, de Clark e Super-Homem, de Wayne e Garth (Quanto Mais Idiota...) ou com qualquer das máscaras com que já se apresentaram, de O Mágico de Oz e De Volta Para o Futuro até dos drooges de Laranja Mecânica e de Darth Vader e Hans Solo, ou sei lá eu.
Mas além do pop discarado, a homenagem explícita do disco é logo para o Violent Femmes, bandinha americana do início dos anos 80, meio punk meio folk. A cover de Gone Daddy Gone, no entanto, é puro novo rock – de olho em Bloc Paty e Strokes, com guitarrinha dedilhada, bateria quadrada, voz rouca acompanhada da guitarra na melodia do refrão, enfim. Trabalho de nerd. Muito bom de ouvir, aliás.
Só que o amor ao rock aparece mais forte é na reverência oculta ao Pixies, aquela banda que mudou tudo e acabou antes de ultrapassar a barreira do “alternativo” que a década de 90 neoliberou (cadê as fronteiras que estavam aqui?...). Just a Thought é a mudança de clima em uma mesma música que Kurt Cobain – por acaso outro cdf da música pop – pegou de Frank Black e usou em Smells Like Teen Spirit. A melodia está ali, disfarçada debaixo de peso, empolgação, entrega, alma. Ou simplesmente novidade a partir da enciclopédia roquenrou. A energia que move tudo, ao fim das contas, é essa.
Em vez da distorção de guitarras, a dupla usa levadas de drum n’ bass cheias de prato e bumbo alternadas com silêncio. Os três minutos e quarenta e dois da música, disparada a maior, são de puro controle do público. A qualquer hora, alguém pode se machucar, mas com os dois em cima do palco, não rola. Ao fundo, um tecladinho finge que é uma cítara. E Cee-Lo entrega-se, tentou tudo menos suicídio, mas passou pela cabeça.
Em Transformer, a onda pixies volta em versão menos radical, com uma flautinha indígena nervosa que parece de filme de caubói. A voz é de robô, percebe o contraste? O disfarce? Um disco que começou com a primeira música a chegar no primeiro lugar da parada britânica só com vendas on-line (Crazy) tinha tudo para carregar um peso simbólico alto demais. Mas Dangermouse e Cee-lo, vestidos de Gnarls Barkley (fora a brincadeira com o astro do basquete invocado Charles Barkley, um leitor enraivedido do crítico Lester Bangs na década de 70) não parecem estar nem aí.
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