contato |@| sobremusica.com.br

Bernardo Mortimer
bernardo |@| sobremusica.com.br

Bruno Maia
bruno |@| sobremusica.com.br

1.12.06

O Hutuz Rap Festival do Bernardo

No Hay Banda?
foto Fabiana Cruz

      O Hutuz 2006 levou mais de quinze mil pessoas nos três dias em que se concentrou na zona portuária do Rio de Janeiro, no Armazém 5. Racionais MCs e MV Bill se revezaram no fechamento das duas primeiras noites, e tocaram juntos um depois do outro no domingo. Públicos respectivamente de mais de 6 mil, mais de 5 mil e quase 4 mil. De fora, Mos Def em participação de uns vinte minutos, os franceses do La Caution e o angolano MC Kappa. Fora o Pavilhão 9, Cabal, toda a programação do palco alternativo e a incandescente Batalha de free styla (peguei o vírus da rima).
      No geral, a onda daquela reunião de gente impressiona e até emociona, porque vem baseada em um trabalho de militância e ação político-social pelas periferias do Rio – e do Brasil – que é fruto da obstinação de uma série de gente envolvida com a Central Única de Favelas e outras organizações não-governamentais. É um movimento que não tem grande visibilidade fora dele mesmo.
      Afastado dos centros de repercussão viciados, o hip hop cresce com uma liberdade que começa a lhe dar personalidade e referências locais. Falta rádio, falta tv, faltam algumas coisas, mas o momento é de achar saídas para todo mundo, não é isso? Se a influência americana, e em segundo mas forte plano paulista, ainda tem força, não dá nem pra comparar com a situação de anos atrás.
      Até o Bill, em entrevista pra gente, lembrou disso: “é inconcebível que um grupo de rap carioca fale ‘morou, mano?’, ou ‘é nós na fita’, igual aos caras de São Paulo. Porque isso não é gíria do hip hop, é gíria de São Paulo. Como ‘Já é’ é gíria do Rio de Janeiro”. A preocupação é séria: “uma coisa que eu tenho dito é que eu acho que os grupos precisam se preocupar em sair da caricatura. Sair da caricatura é não querer ser o Mano Brown, porque só vai existir um. A gente tem que olhar novas coisas”.
      Este texto tem uma conclusão a apresentar e uma pergunta a deixar no ar. A conclusão: o hip hop brasileiro (e o carioca em especial, pela proximidade aqui) está sim abandonando a caricatura. Ponto. A pergunta: o hip hop está ouvindo coisas novas? Ponto de interrogação. Pra começar, dois momentos de um passado recente.

foto Fabiana Cruz

      Em alguma data do primeiro semestre de 2004, no interior de São Paulo, um jovem foi morto a tiros durante um show do Racionais MCs. O corpo foi levado pelos braços da platéia até o palco, onde Mano Brown o deitou e – música interrompida – rezou um Pai Nosso pela alma. Todos acompanharam a oração, inclusive o Jornal Nacional, assim que recebeu as imagens feitas por um cinegrafista amador.
      A tragédia serviu para provocar uma reflexão no rap nacional. O Racionais parou para pensar, e Mano Brown – Malcolm X e líder incondicional do movimento – organizou uma série de reuniões para reavaliar a direção dos fatos com outros rapeiros. A MTV estava então de portas abertas, ainda mais depois de um VMB inteiro de prêmios para o clipe de Diário de um Detento. O Sobrevivendo no Inferno já estava consagrado como um dos discos mais importantes da década de 90. Festas de rap rolavam para gente com e sem dinheiro pela cidade. Mas alguma coisa estava errada.
      As reuniões foram fechadas. O que se sabe é que foi feita uma auto-crítica ao uso da violência nas letras, que podia estar sendo entendido não mais como denúncia, mas como propaganda de um estilo de vida. No Brasil, gangsta e miséria não tinham dado uma boa mistura.

      Virada do ano para 2006, a Folha de São Paulo faz a tradicional materinha do que serão as novas caras do ano na música, o sobremusica até tocou no assunto. Entre produtores alternativos e donos de selos pequenos e médios, tirando Céu e Moptop, só deu rap. Sempre um rap sem barreiras fechadas, de olho no samba, em jazz, no funk carioca. Eram citados o Turbo Trio de B Negão e o Záfrica Brasil, que foi só agora lançar o Tem Cor Age.

      Daí, vem a escalação do Hutuz 2006. Atrações principais: Racionais e MV Bill. Só. Não parece que você já viu esse filme? Um dia um, outro dia o outro, e no terceiro os dois. O maior nome do rap do país desde o início da década de 90 e o segundo maior desde a década de 2000 (embora o show dele tenha sido melhor), o Malcolm X e o Luther King do movimento, Mano o radical de cara fechada e Bill o líder negociador, político. Os dois fundamentais para fazer andar a caravana, mas não o suficiente.
      Mano Brown não quis falar com a gente, ele quase não dá entrevistas (link só para assinantes do uol) e enxerga o caminho futuro do rap como independente da mídia. Do outro lado, mas interessantemente afinado, MV Bill avalia que o discurso do rap é muito importante para um festival como o Hutuz, tanto quanto a música (e o tal olhar novas coisas): “eu acho que isso [a participação política como pré-requisito de rapeiros] acontece de uma forma mais natural, porque eu acho que tá mais ou menos encaminhado, em mais de 90% dos grupos. Uma coisa que já era quase uma regra... acho que não precisa oficializar isso”. Eu me lembrei de uma frase lá de 99, do KL Jay, dj do Racionais, definindo a banda. Era algo do tipo: a letra é para os manos refletirem sobre a condição deles na sociedade, e o som é para fazer dançar, e aí chega até no boyzinho da boate. E pensei também na escalação do recente festival da Marina da Glória, com uma noite para Instituto, dj Shadow e Beastie Boys, só rap de branco, seja lá o que isso quer dizer, na prática.
      Mas não citei meus pensamentos.
      “O que que você acha do trabalho de grupos como o ZÁfrica Brasil, Instituto... mais de São Paulo, nesses casos, que já tem muito samba misturado, já tem coisa de jazz, de dub...
Bill – Em alguns casos, como o do Instituto, por exemplo, eles fazem uma outra coisa que já sai quase do rap mesmo. Outra parada. O ZÁfrica é uma banda de rap que mistura. O Instituto é uma banda que toca outros sons, do caralho, e pá... e eu acho do caralho os dois. Acho muito maneiro. Tem um projeto que eu fiz, que é uma bandinha duns caras que tocam lá perto de casa, me chamaram pra assistir um ensaio deles, têm uma banda de rock, e aí quando eu cheguei lá eles mostraram todas as minhas músicas em versão hardcore. Daí eu comecei a rimar e a gente faz uns showzinhos lá pela CDD [Cidade de Deus], ensaios na rua. Então é um projeto meu paralelo que deixa um pouco de ser rap pra ser um negócio bom de experimentar. Eu acho que quanto mais experimentos fizer, respeitando, é lógico, a história, a cultura e o caralho, mas quanto mais experimento, mais sonoridade nova...
      Mas na sua cabeça o ZÁfrica Brasil poderia ser um convidado do Hutúz?
Bill – Claro!! Já foram, já...”

      De qualquer forma, estava garantida a frase que mostrava que a nossa idéia de pauta tinha uma ponta na cabeça dele, também.

      “ E você acha que a galera [o tal do rap nacional] já tá conseguindo criar mais independente [de americanos e paulistas] ou ainda tá muito presa?.
Bill - Muito presa. Tá começando a criar ainda. Tem que criar muito mais.”

foto Fabiana Cruz

      Um pouquinho antes, a gente tinha falado com o dj do Snoop Doggy Dogg, Spin Easy. Fora umas fofocas do Doggfather e as impressões de fora da cena carioca, que mistura Barra da Tijuca e Leblon com o Viaduto de Madureira e o Emoções da Rocinha, ele acabou entrando na nossa angústia, mas defendendo o dele. “Eu acho Marcelo D2 ótimo, eu adoro a fusão dele, que eu chamo de hip hop samba. Mas sabe, o hip hop começou conosco [americanos]. A gente ia aos discos das nossas avós, pegava os discos e só tocava o break. Aí, pegava um outro e repetia. Então começou dos nossos sons antigos. Então, eu acho que deveria vir, que o hip hop nacional brasileiro, deveria usar mais dos sons antigos brasileiros. Para ser honesto, eu tenho medo de fazer isso aqui, mas eu faço uma mistura. Eu não sei se eles vão gostar, eu faço um lance do 50cent com Deixa Acontecer do Revolução”.

      Ele não tocou a música, mas voltou a defender o produto nacional (nacional pra ele, de Nova Iorque). “Eu acho que há um egoísmo [na nossa insistência, eu acho]. Hip hop começou nos Estados Unidos. Então eu não acho que deva ser levado a um ponto em que o hip hop brasileiro não tenha nada a ver com o americano. Eu acho que não é justo”.
      Thayde, ex-parceiro de dj Hum na primeira dupla a ter destaque no rap, ainda nos fins da década de 80, não estava lá – e participa da série Antônia da tv Globo, sobre o dia-a-dia de uma periferia paulistana para além da violência. Marcelo D2 é uma figura que é difícil de defender, apesar do talento e tal, mas tem uma posição fácil de adivinhar.
      Mesmo assim, não seria nem um nem outro o nome que poderia estar ali na escalação para indicar que há uma busca por novos rumos, passem eles pelo samba ou não. Falou-se muito em Cabal, nos bastidores do festival, mas eu francamente não o vejo como quem possa pode vir a fechar com moral uma noite de público, no mínimo, de 4 mil pessoas, como se viu. Se o caminho não é o do Instituto, uma opinião com a qual não concordo, mas entendo bem a coerência que tem, qual será? Rappin Hood e ZÁfrica? Algo que o Marechal ou os Inumanos venham a apresentar? Um De Leve mais consistente? O Mr Catra? Algo na onda de Jeru Banto, Lápide ou Black Alien, com espírito digitaldubs? Fernandinho Beatbox e Kamau?
      Eu gostaria muito de ver uma novidade nascida e criada das batalhas de rimas. Porém, a verdade é que, no horizonte, a minha interpretação é: a força coletiva do hip hop nacional passa por um momento de crise na criação. Se há conjunto, falta o craque das divisões de base para fazer a torcida gritar. O público está lá, o espírito é presente, mas na hora da renovação, no hay banda.

foto Bruno Maia


p.s.: Me surpreendi com o show do MV Bill. Forte, bem estruturado e arranjado, com dois naipes (metal e cordas) bem aproveitados e uma dobradinha com a irmã com bela direção. A resposta do público justifica toda a competência.
Quanto ao Racionais, achei a mais fraca das turnês a que assisti, embora seja inegável o magnetismo dos caras à frente do que Mano Brown definiu bem no disco Ao Vivo: “uma festa de rap é um monstro, e tem que dominar o monstro”. “O show propriamente dito é só um detalhe”. Qualquer beatlemania perde em escala, e ainda vai demorar até chegar quem substitua.

4 Opine:

At 12:30, Blogger Joca said...

curti os 2 textos... mas, na verdade, quem foi o 'headliner' da segunda noite não foi o bill e sim o facção central, que mostrou que é um grupo com amplas possibilidades de tirar o racionais do "trono". qto ao bill, dificil ter alguem com carisma e competencia para "derrubá-lo" da preferencia dos rappers cariocas, que se identificam muito com seu trabalho, principalmente depois de "falcão" e o "o bagulho é doido", marcos históricos de um modorrento 2006 para o rap brasileiro.

 
At 13:52, Blogger Bruno Maia said...

Salve Joca!!!

é, o facçao foi headliner na pratica, mas na divulgacao do proprio site vinha o nome do Bill. acho que foi mais nesse sentido que o Bernardo falou...

 
At 16:53, Blogger Joca said...

se vc olhar na comunidade do hutuz no orkut vai ver os comentários dos fãs dos racionais com relação ao show do hutuz. nada diferente do que vc falou... sinal dos tempos.

abrs!

 
At 12:18, Blogger Bernardo Mortimer said...

Tem outra entrevista do Brown aqui: http://www.radiolaurbana.com.br/index.asp?Fuseaction=Conteudo&ParentID=9&Menu=16&Materia=1193

Chega lá.

 

Postar um comentário

<< Home


O Hutúz Rap Festival do Bruno
Show :: "Bibi conta e canta Piaf"
Estudando os ruídos
Show :: The Bravery
Show :: Bibi Ferreira & Amália Rodrigues
Show :: Dado Villa-Lobos
Assunto: lonelygirl15
Repetição sem farsa
É assim, Tio Julian?
Despedida de Robert Altman

- Página Inicial

- SOBREMUSICA no Orkut



Envio de material


__________________________________

A reprodução não-comercial do conteúdo do SOBREMUSICA é permitida, desde que seja comunicada previamente.

. Site Meter ** Desde 12 de junho de 2005 **.