Na sala de jantar
Falar mal da volta dos caras é muito fácil. Há dezenas de frases prontas pra dizer que a história só se repete como farsa. Por isso, vou tentar me exercitar do outro lado, analisando porque foi bom assisti-los. Deixo as queixas para quem as queira, apesar de eu e você já sabermos quais são.
Certos fenômenos musicais têm um peso muito maior enquanto acontecimentos históricos do que enquanto instantes coloridos. Ver o Roger Waters tocando Dark side of the moon, no Roskilde, foi ótimo, mas melhor ainda é saber que poderei contar isso durante toda minha passagem por essa vida. O mesmo serve para a volta do Chico Buarque em Berlim, para o Pearl Jam na Apoteose, o Smashing Pumpinks no Metropolitan ou o Carlinhos Brown no Rock in Rio. São pequenos pedaços de história dos quais gostamos de nos apropriar para ter a sensação de que vivemos algo de fato relevante. Ver o Mutantes foi isso. Uma experiência histórico-antropológica mais do que musical.
Durante a tarde, eu assistia um material de arquivo para uma pesquisa e, dentro dele, tinha uma entrevista do maestro Júlio Medaglia ao (então) recém estreado Programa Livre, no SBT. Era coisa de 1991. A entrevista rapidamente virou um bate-boca desenfreado porque o maestro avacalhou toda a produção de rock após 1975, sobretudo a feita no Brasil. A galerinha queria matá-lo. De rock brasileiro, ele só defendia o Mutantes.
Ok, a segunda metade da década de 1960 foi deveras interessante, a ponto do próprio maestro dizer que, entre o Sgt Peppers e 1975, a música clássica ficou esteticamente paralisada porque o rock estava muito mais à frente no experimento das possibilidades de sintetizadores, pedais, etc.
Voltando a 2006.
- O problema, gente, é que isso passou – diria eu.
- Passou, mas eu não estava aqui pra ver – responderia eu pra eu-mesmo.
E criaria uma dúvida maniqueísta sobre o valor que isso tem pra mim. É divertido ouvir "Tecnicolor" e "Baby" ('you must take a look at me'...) com cheiro de ‘Abbey Road-está-passando-por-aqui”. É divertido ouvir aqueles longos fins de música, com a bateria comendo, os temas harmônicos se repetindo sobre vocais onomatopéicos que sempre sugerem que, a qualquer momento, alguém vai gritar um “HEY JU-DE...” . E continuar com o “na-nana-nananáááá...”
É um rock que ficou pra trás no tempo. A idéia de que no rock as pedras estão sempre rolando sem criar limo é tida como uma espécie de “diretriz do movimento”. O Mutantes tem um limo charmoso. Ninguém quis bancar o modernoso, até porque o Sérgio Dias tem certeza de que aquilo até hoje é vanguarda. Não é, mas é importante. Para alguns, a idéia de um “Museu do rock” pode parecer uma contradição com o dinamismo que o gênero sugere. Mas é importante ter um. Um museu itinerante, onde as peças se movimentem pelo mundo, como Globetrotters de guitarras. Ainda que a Zélia Duncan precise de uma backing vocal para que a banda dê conta de reproduzir os agudos característicos de Rita Lee naqueles tempos.
O setlist foi curto. Alem das já citadas, dá pra enumerar "Cantor de Mambo", "Top Top", "2001", "Ando meio desligado", "Minha Menina" (a música de Jorge Ben, com a qual o Mutantes começou a carreira cantando no programa do Ronnie Von), "Cabeludo Patriota"... Tiveram ainda outras que me fogem por ora. "Balada do louco rolou" lá pelo meio da apresentação, mas foi fazer mais sentido no final.
Ao voltarem para o bis, Zélia Duncan anunciou que refariam três músicas, procedimento normal em se tratando de gravação para a tv. Qual não foi a surpresa geral quando Arnaldo Batista, após tocar as repetições de "Ando meio desligado" e "Balada do Louco", se revoltou e fez jus à sua mais famosa música. “Ah, gente, tá bom, né, Chega. A gente fica aqui tocando e a Globo só erra!!! Eu não vou mais tocar. Tchau.”. Assim. Levantou e foi-se. Zélia e Sérgio rapidamente agradeceram e encerraram a apresentação, visivelmente constrangidos. Rolou um certo desespero na galera técnica, demonstrando que, de fato, aquilo não estava no script. Mas também, cá entre nós, não foi surpresa pra ninguém. O cara é louco, mas é feliz. Mais louco é quem o diz.
Balanço final: Para alguém que vê em 2007 a possibilidade de completar ¼ de século, como é o caso desse que vos escreve, tratou-se de um fenômeno diferente. Não existe outro Mutantes por aí. É um rock que passou, mas que ainda cai muito bem. Ficou datado, mas é bacana. Não é bateria-reta, não é eletrônico, não é regionalista, não é psicodélico. Talvez não seja nem mais tropicalista. É um polaroid da força bruta de adolescentes que viveram intensamente a contracultura e que, depois, envelheceram. A SonyBMG está por trás de cuidar do relançamento do grupo. Bacana. Ponto pra eles. Tá aí uma coisa que as gravadoras têm feito cada vez melhor: recuperar a memória musical desse país e capitalizar em cima. Certamente, isso se deve mais à facilidade de se relançar discos que estavam fora de catálogo com custos mínimos e com uma boa margem de lucro do que à bondade e zelo com a cultura nacional. Mas bem ou mal, eles estão fazendo isso e acho que devem continuar fazendo. Mutantes não tá com pinta de quem quer bombar no MySpace.
Dito isso, mantenham-se as reverências. Como show, o Mutantes ainda vale a pena. A diversão tem que estar na cabeça de cada um. Não dá pra esperar novidades vindas do palco. Não é essa a onda. Tal como Gustavo Kuerten e Romário, o Mutantes tem crédito para ir, vir, voltar e parar na hora que bem entenderem. Enquanto eles quiserem estar por aí, vai ter alguém querendo ver. Na sala de jantar, ou você está ocupado ou só lhe resta uma alternativa. Todo mundo quer um pouquinho de história pra si. Todo mundo que se sentir eterno. Todo mundo quer dizer que viu. E eu vi.
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sobremusicatv
:: Mutantes - "Ando meio desligado" (trecho)
3 Opine:
Onde rola essa entrevista com Júlio Medaglia? Arquivo de onde?
Esses revivals do mundo rock nunca me empolgam muito em termos da possibilidade de surgirem novas composições interessantes (não conheço nenhum caso), mas fora essa ressalva não tenho absolutamente nada contra. As "críticas" que geralmente são feitas não passam de oportunismo barato.
Se os caras ainda conseguem público pra tocar, têm mais é que tocar mesmo. Acho que o público é o termômetro mais significativo para quem ainda tem vontade de se apresentar - e não um punhado de críticos broxas.
Fiquei profundamente arrependido em não ter visto o Roger Waters - o famoso Rogério Águas. Em compensação, o Living Colour foi um lavar de almas. Como seria um Queen, um Led, um Pink Floyd.
Fora isso tudo, os Mutantes são geniais. A seqüela do Arnaldo Batista é muita, mas nesse caso foi maravilhosa. A Zélia me parece que foi a escolha mais certeira possível. Gosto muito dela.
Abraço,
André
cara, isso é um material que eu tenho aqui comigo. Na verdade, isso me foi emprestado por Mr. Nelson Meirelles. Estou utilizando-o para a pesquisa do livro que estou fazendo sobre o rock brasileiro dos anos 90. A fita em questão trazia um Programa Livre de 1991, recém-chegado no SBT, em que o Cidade Negra foi se apresentar. Na época, o Nélson gravou isso como clipping da banda. Em um dos blocos, rolou o maestro Júlio Medaglia falando seus recalques e razões. A galera fica em polvorosa. Ele fala mal do próprio Cidade Negra, mas nesse bloco os músicos estavam no camarim. Enfim, material pessoal de Mr. Meirelles.
abs!
BM
Voltado a Mutantes, concordo que a escolha da Zélia foi a melhor possível. Talvez até melhor do que a própria Rita no estágio atual. Só lhe falta mesmo alguns agudos. E esse papo da evoluçao do rock, de museu itinerante também é bacana. Sigamos.
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